Dia dos Povos Indígenas: vozes que resistem ao silêncio da história

Para Mariana Cabral, a
data deve ser marcada
pela escuta e pelo
diálogo genuíno - Foto: Arquivo Pessoal
Para Mariana Cabral, a data deve ser marcada pela escuta e pelo diálogo genuíno - Foto: Arquivo Pessoal

O antigo “Dia do Índio”, marcado em 19 de abril, passou a se chamar Dia dos Povos Indígenas em 2022, com a sanção da Lei 14.402, de autoria da deputada Joenia Wapichana, a primeira mulher indígena eleita para o Congresso Nacional. A mudança é mais do que simbólica: é uma tentativa de romper com estigmas e reconhecer a pluralidade de povos, culturas, línguas e histórias que compõem a presença indígena no Brasil.

“A ideia é valorizar os povos indígenas e não um indivíduo estereotipado e descontextualizado chamado ‘índio’”, explica a deputada na justificativa da lei. A nova nomenclatura reforça o direito dessas populações de manter e fortalecer suas identidades, idiomas, religiões e modos de vida, inclusive no campo do desenvolvimento social e econômico

Ao jornal O Estado, a professora indígena e pesquisadora da UFMS, Suzana Vinicia Mancilla Barreda, explica que a palavra ‘índio’ generaliza, reduz, apaga. “O que estamos tentando fazer é devolver aos povos indígenas a complexidade e a riqueza que sempre tiveram, mas foram silenciadas”, pontua. Segundo ela, o nome anterior remetia a um ser quase folclórico, isolado no tempo. “Mas o indígena está nas universidades, nos centros urbanos, na ciência, na arte. Ele usa celular, se forma doutor, produz conhecimento.”

Para a professora, a mudança do nome da data também exige uma mudança de postura, especialmente na educação. “Não é mais possível estudar os povos indígenas como se fossem uma curiosidade antropológica distante. Eles estão aqui, vivendo, criando, falando, ensinando.”

Suzana defende uma educação ampla, inclusiva e humana, que abrace a diversidade como um valor, e não como um problema. “O indígena não é alguém do passado. Ele está no presente. E deve estar também no futuro, com seus saberes preservados e respeitados.”

A história contada de um só lado

Durante séculos, a história do Brasil foi contada sob uma ótica única — a do colonizador. Os conflitos, as resistências, as mortes e as culturas apagadas dos povos originários foram relegados a notas de rodapé. Isso está mudando, ainda que lentamente.

“Há hoje historiadores que buscam novas abordagens, tentando incluir essa diversidade como patrimônio. Mas ainda são exceções”, analisa Suzana.

Para ela, reconhecer a importância das línguas, cosmologias e práticas indígenas é um dever não apenas da escola, mas da sociedade como um todo. “A identidade indígena é construída no cotidiano, não só nos livros.”

Ser indígena é resistência

A invisibilização também machuca. “Às vezes o preconceito não é dito, mas está nas entrelinhas. É um silêncio que marginaliza”, conta Suzana. Ela, que se reconhece como filha de bolivianos — de origem quéchua e aimará — e nascida no Brasil, fala da dor de transitar entre culturas e não ser plenamente aceita por nenhuma.

Essa dor se reflete nos jovens. O alto índice de suicídio entre indígenas é uma realidade alarmante. “Muitos não encontram espaço para afirmar quem são. Sentem-se menos, inferiorizados, sem entender racionalmente por quê”, diz. Para ela, valorizar a história indígena é, também, uma forma de salvar vidas

A música como memória viva

Para a estudante de pós-graduação em Estudos de Linguagens da UFMS, Mariana Cabral Nogueira Gonçalves, da etnia Terena, o mês de abril é um momento simbólico de fortalecimento da identidade indígena. Ela ressalta que as manifestações culturais dos povos originários não se resumem a um único dia, mas se expressam cotidianamente por meio da música, da língua, do corpo e da memória.

“O mês de abril é um período em que nos mostramos ainda mais: nossos cantos, nossas sonoridades, nossas danças. Essa data tão especial é celebrada pelas nossas lutas, conquistas, alegrias, desafios e resistência. Nossa memória é viva, e ela se manifesta todos os dias”, afirma Mariana.

Ela defende que a sociedade brasileira deve ultrapassar o olhar folclorizado que muitas vezes marca o Dia dos Povos Indígenas. Para ela, o momento deve ser de escuta e diálogo genuíno. “As pessoas não indígenas precisam entender que não queremos apenas uma compreensão rasa de quem somos. Queremos diálogo, trocas de conhecimentos e o fortalecimento das nossas práticas, mostrando nossa diversidade e riqueza cultural.”

Mariana destaca que o chamado “resgate” das tradições indígenas é, na verdade, uma continuidade. “Nossas memórias são praticadas diariamente, passadas de geração em geração. O 19 de abril marca essa união com mais força, mas tudo isso já pulsa em nós o tempo todo.”

Apesar de ter crescido em contexto urbano, Mariana conviveu desde cedo com as expressões culturais de sua comunidade. No entanto, foi apenas ao entrar na universidade que ela percebeu o quanto sua trajetória destoava das vivências dos colegas:

“Na infância, o idioma, a comida, a música… tudo isso estava presente. Mas, quando entrei no curso de Música, senti um choque cultural muito grande. Eu não sabia o que era uma orquestra, música clássica, MPB. Foi um impacto.”

Aos poucos, ela encontrou apoio em iniciativas como a Rede de Saberes da UFMS e passou a conhecer outros estudantes indígenas em contexto urbano ou vindos diretamente dos territórios. A partir dessas trocas, Mariana começou a entender melhor o lugar que ocupa.

“Quem vem do território enfrenta o peso da saudade, da adaptação à vida urbana e o custo de permanecer na universidade. Já nós, indígenas da cidade, lidamos com a dualidade entre manter os costumes herdados e viver num ambiente que, muitas vezes, não entende ou não valoriza esse modo de vida.”

Esse sentimento de “não pertencimento” pode ser doloroso e, segundo Mariana, tem raízes no silenciamento histórico. “Por medo do preconceito, muitas vezes deixamos de nos expressar como gostaríamos. Fomos silenciados. Mas seguimos resistindo.”

Sobre a pressão de manter sua identidade em ambientes acadêmicos, Mariana é direta: “Não há pressão em ser quem somos. O que fazemos é dialogar com quem não conhece a nossa história. O problema é quando não há interesse. Isso alimenta estereótipos e a desinformação.”

Ela revela que, por não se encaixar no imaginário popular do que seria “ser indígena”, já teve que lidar com olhares de desconfiança. Mas o orgulho de sua comunidade com sua trajetória acadêmica supera qualquer barreira. “Todos têm muito orgulho. Ainda mais porque minha pesquisa é sobre a dança e a música Terena, que são parte viva da nossa identidade.”

Sobre o futuro, Mariana espera “voltar para o território e ensinar tudo o que aprendi. Levar nossas sonoridades do Pantanal para as crianças, porque elas são o nosso futuro. É assim que manteremos nossa tradição viva.”

 

Suelen Morales

 

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1 thoughts on “Dia dos Povos Indígenas: vozes que resistem ao silêncio da história”

  1. É gratificante ver pessoas de luta como você abordando esse tema com sensibilidade e propriedade. Sua pesquisa não apenas ilumina as questões enfrentadas pelos povos indígenas mas também celebra sua cultura e contribuição para a sociedade. A forma como foi destacada a importância da preservação de suas tradições e direitos, e levar às crianças o conhecimento adquirido na sua trajetória é fundamental para aumentar a conscientização sobre essas questões. Parabéns Profa. Mariana!

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