Centro de Campo Grande vira abrigo, campo de conflito e palco de tragédias

O número de pessoas em situação de rua na Capital tem crescido nos últimos anos - Foto: Nilson Figueiredo
O número de pessoas em situação de rua na Capital tem crescido nos últimos anos - Foto: Nilson Figueiredo

Comerciantes relatam violência, abandono e prejuízos, enquanto população de rua cresce à luz do dia

 

No coração de Campo Grande, o centro histórico e comercial da cidade vive uma contradição dolorosa. Ao mesmo tempo em que abriga o fluxo diário de trabalhadores, comerciantes e consumidores, tornou-se também moradia improvisada de dezenas de pessoas em situação de rua, muitas delas visivelmente sob efeito de drogas ou em sofrimento mental. Essa convivência ‘forçada’, tem gerado um ambiente de tensão, medo e tragédias.

A Avenida Afonso Pena, cartão-postal da Capital, virou cenário de risco. Em apenas 48 horas, duas pessoas foram atropeladas e morreram tentando atravessar vias movimentadas, fora da faixa, sob efeito de álcool ou entorpecentes, conforme relataram comerciantes. Ambas as vítimas viviam em situação de rua.

A mais recente, Rosimar Ferreira dos Santos, de 51 anos, foi atingida na noite da última terça-feira (8), no cruzamento com a Rua 13 de Maio, em frente à Praça Ary Coelho. A motorista, que dirigia uma caminhonete, parou para prestar socorro, mas Rosimar não resistiu aos ferimentos.

No domingo (6), outro homem (ainda não identificado) morreu atropelado por um Honda Fit no cruzamento da Afonso Pena com a Ernesto Geisel. O motorista fugiu, mas depois se apresentou à polícia.

“Eles tomaram conta aqui”

Para Maria, nome fictício de uma comerciante que atua há mais de 40 anos na região da antiga rodoviária, a convivência virou motivo de medo. “Já fui agredida com um soco no nariz por uma usuária de drogas. Um cliente meu foi agredido enquanto almoçava. Tem gente que deixou de vir, deixou de se hospedar aqui com receio”, desabafa. Segundo ela, muitos em situação de rua permanecem fixos na região e a presença de “igrejas que dizem acolher, mas não retiram essas pessoas da situação”, só piora a percepção de abandono.

A sensação de impotência se estende também a quem tenta sobreviver com pequenos negócios informais. Na manhã de ontem (9), fiscais da Semadur e agentes da Guarda Municipal Ambiental demoliram uma garaparia na Praça Aquidauana, que funcionava há mais de um ano. O comerciante João Gomes, de 70 anos, relata a frustração e o prejuízo.

“Não me deram nem chance de me defender. Fiz um empréstimo de R$ 20 mil para comprar o ponto, ainda estou pagando. Fui atrás de alvará, fiz o requerimento e esperava o prazo, mas vieram antes e destruíram tudo. Dizem que os ‘noias’ faziam aglomeração à noite. Mas eu não posso cuidar disso, eu ia pra casa. Agora o comércio fecha e os usuários ficam. Eles continuam. Eu perdi”, resume.

A prefeitura, por meio de nota, alegou que a remoção da estrutura instalada na Praça Aquidauana seguiu todos os trâmites legais. Embora a Lei da Liberdade Econômica permita a abertura de negócios por autodeclaração, ela não autoriza a ocupação de espaços públicos sem autorização formal. No caso citado, o responsável pela garaparia foi notificado por explorar área pública sem permissão.

“Todos os prazos legais foram respeitados, e a remoção foi executada somente após o vencimento desses prazos, conforme a legislação vigente. A ocupação de logradouros públicos sem respaldo legal é vedada pelo Código de Posturas do Município, cabendo ao Executivo adotar as medidas administrativas e judiciais necessárias. A Prefeitura atua em conformidade com a lei para o ordenamento urbano e a preservação dos espaços públicos”, assegurou o munícipio.

Nossa equipe flagrou o momento em que a garaparia estava sendo retirada da praça – Foto: Nilson Figueiredo

Medo e autodefesa

O clima entre os moradores também é de exaustão. Wilson, morador da região central, defende que a única saída seria a demolição de imóveis desocupados para evitar que virem abrigo de usuários. “A prefeitura tirou todo mundo, voltou tudo de novo. Estão roubando fio, queimando, arrombando. A gente já está pensando em fazer lei com as próprias mãos. O centro é deles agora. E a gente que está errado?”

Gelasio Roque, dono de uma ótica na Rui Barbosa, relata a convivência ambígua: “Pago guarda particular para proteger minha loja. A gente convive com eles, tenta ajudar, mas tem uns que roubam mesmo. Estão arrebentando lojas, entrando à noite. Os mais antigos a gente conhece, são diferentes. Mas tem muito caso de violência”.

A SAS (Secretaria de Assistência Social) informou que atua com o SEAS (Serviço Especializado em Abordagem Social), que atende pessoas em situação de rua e ainda que as equipes trabalham 24 horas por dia, todos os dias da semana, nas sete regiões da Capital, por meio de buscas ativas, denúncias e mapeamento. Denúncias podem ser feitas pelos telefones (67) 99660-6539, 99660-1469 e 156.

“As abordagens se concentram na região central, viadutos, praças e na Avenida Ernesto Geisel. O acolhimento é oferecido, mas a pessoa pode recusar, conforme o direito garantido pela Constituição (Art. 5º, Inciso XV). Algumas pessoas abordadas têm casa, mas permanecem nas ruas por livre escolha. Usuários de drogas geralmente recusam acolhimento. Nesses casos, o SEAS intensifica o acompanhamento para criar vínculo e incentivar o tratamento”, dizia trecho da nota.

Ainda conforme a pasta, foi criado a Gerência de Proteção Social para a População em Situação de Rua, que visa, justamente, planejar ações para melhorar o trabalho do SEAS, com fluxos integrados, comitê intersetorial, sistema de regulação de vagas e parcerias com universidades. “A política é integrada com outras secretarias, como Sesau, Segurança Pública, Funsat (emprego) e EMHA (habitação), garantindo acesso a serviços essenciais”.

 

Por Suelen Morales

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