Sentidos da vida – e boas festas!

Josemar de Campos Maciel - Foto: divulgação
Josemar de Campos Maciel - Foto: divulgação

Como celebrar o natal? Podemos começar não nos matando. Mas quero ir além.

Vivemos eufóricos com a comunicação fácil e empolgados com o novo. Paradoxalmente, nossas áreas de conhecimento dedicadas ao cuidado (a filosofia, o campo “psi”, as religiões), nem sempre dialogam sobre o sentido da existência humana. Mas essa tarefa não pode esperar. O sentido ignora metafísicas, passa batido por métricas e previsões e desabrocha desejante, como diálogo do ser humano consigo mesmo, mobilizando ferramentas para expandir vazios e constituir subjetividades. Ou degenera em fascismo e genocídios.

Para não cairmos na cantilena do senso comum, lembremos Lacan (Seminário 17), que localiza o sentido na tensão entre desejo (sempre insaciável) e gozo (sempre excessivo, tentativa de ultrapassagem do prazer regulado). Em outra reflexão, apresenta à nossa reflexão o “sinthome” (Seminário 23), tese que enuncia a resistência ao “desSer”, retrabalhando a ideia da alienação. Lacan ecoa a crítica (profética) freudiana ao “Mal-estar na civilização”: urge desmascarar a simplificação da “felicidade” e as retóricas da sua celebração, expondo-a como engano e recalque social. A reflexão sistemática, colhida no esforço de significar(-se), desaloja essas encenações e instaura uma pergunta, como aquela da poesia a Drummond, no magnífico “A rosa do povo/A procura da poesia”: “trouxeste a chave”?

Só que chaves do sentido são difíceis de encontrar. Mas existem concepções culturais de “vida boa” que atalham, nas histórias do cuidado cidadão, essa clínica de nós mesmos. Elas inspiram vetores plurais, ancorados no realismo do abraço do existir. A noção de sentido, sozinha, pode ser pesada para pensar a totalidade da existência, mas aparece caleidoscopicamente num desfile de concepções que abrem campos de referências muito simples.

Como o desejo de dar e receber uma “Shalom” – a tarefa do sentido é a construção da paz integral, no horizonte cabalístico. Evoca uma harmonia relacional sem dominação (Martin Buber). Um caminho para trabalhar o sentido da vida, aqui, seria a escuta como reciprocidade, circulação e alívio de angústias, lutos e perdas. Essa tarefa é parente daquela de produzir a “Salaam” – a paz serena do agir virtuoso e alinhado, como no mundo da língua árabe. Aqui se articula uma submissão serena e realista a um além-do-prazer (Muhammad Iqbal). Essa busca do alinhamento dialoga com as lutas interiores contra excessos autodestrutivos.

Como a concepção do “Sumak Kawsay” – “bem viver” cósmico do universo quechua (Carlos Viteri), que se impõe contra o gozo-consumo capitalista, fomentando a interdependência com a Pachamama. Aqui se inspiram análises decoloniais e esboça-se a cura das feridas de desterritorialização e periferização, decorrentes das especulações no alienado “desenvolvimento” ocidental. Como a construção do “Teko Arandu”, a “sabedoria reta” (Arturo Escobar) dos povos Guarani, guardiães das Palavras, que afirmam a assinatura da ética como ponto de partida da existência própria, contra a colonização simbólica. Como o “Axé/Ase”, a força vital gerativa da cosmovisão Iorubá (Pierre Verger), que libera o corpo do excessivo planejar racional, instaurando o encantamento, a dança, a magia e a esperança.

Talvez este caleidoscópio aponte algum caminho para encaminhar conversas humanizantes à volta de tererés, para enfrentar a atual epidemia de ausência de ideias, sentido e de afetos, que produz tantas mortes prematuras, sobretudo de mulheres. Feliz natal!

Josemar de Campos Maciel é Doutor em Psicologia (PUC-Campinas) e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UCDB. E-mail: maciel50334@yahoo.com.br

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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