Certa vez, conversando com Roy Wagner, nos corredores do Encontro Anual da Associação Americana de Antropologia, em Washington D.C. – ele um consagrado antropólogo, eu um jovem estudante de doutorado – ouvi do professor a seguinte frase: “você gosta de mim pelas histórias que eu conto. Eu conto as histórias que o xamã me conta. O segredo está aí: no jeito que contamos”. Foi impactante e jamais esqueci aquele rápido momento. Imortalizei a frase na epígrafe da introdução de um livro escrito por mim.
Retomo esse encontro, já distante mais de uma década, porque quero falar da importância do entusiasmo com a pesquisa em Ciências Humanas e com a Antropologia em especial, área a que me dedico há mais de 20 anos. Por décadas, as pesquisas em Antropologia foram consideradas uma espécie de “perfumaria” das Ciências Sociais, algo quase desimportante, sem potência científica, uma ficção.
A Antropologia, ciência nascida como um braço do colonialismo no final do século XIX, desde sua gênese tem no encontro entre as diferenças o seu fundamento. Não obstante todas as críticas feitas à disciplina por ter servido à empreitada colonial em seus primeiros momentos, essa área do conhecimento tem papel central na visibilização das diferenças no que tange à construção de compreensões mais alargadas sobre noções como cultura, sociedade, justiça, solidariedade, comunidade. Mais que conceitos, instrumentos fundamentais para a ampliação da noção de humanidade.
Em Mato Grosso do Sul, tal situação não é diferente. Estamos em um estado com uma das maiores populações indígenas do Brasil. Em nosso estado está a maior aldeia urbana do país. Aqui, também, localizam-se alguns dos epicentros do agronegócio brasileiro. Essa tensão não passa desapercebida da ação de antropólogas e antropólogos no firme propósito de produzir uma ciência que repare injustiças históricas e construa a pujança do desenvolvimento sustentável.
A Antropologia também acompanha as populações ribeirinhas nas entranhas do Estado do Pantanal, produzindo memória a partir de modos de vida quase em processos de extinção. Revela diferentes escalas de cidades e rupturas, permanências, aproximações e deslocamentos entre urbanidades em contextos bastante singulares como os nossos, próprios de um jovem estado da federação. Campo Grande é um bom exemplo disso. Nossa capital abriga um universo urbano para lá de rural, quer dizer: uma cidade que cresce, que se desenvolve, mas mantém uma série de valores, hábitos, costumes, impregnados pela ruralidade característica do interior do estado e que se mantém como o motor econômico da vida urbana. A lente das antropólogas e dos antropólogos capta tudo isso.
Outra possibilidade de encontro da Antropologia com as diferenças se dá no que diz respeito às questões de gênero e sexualidade. Mato Grosso do Sul tem índices alarmantes de violência de gênero, de violência doméstica e de crimes de feminicídio. Torna-se fundamental entender como se organizam os contextos que permitem esses delitos. O olhar atento e meticuloso da Antropologia é uma ferramenta fundamental para essas compreensões. O mesmo vale para a intolerância e o ódio à população LGBT+, igualmente submetida a diferentes graus de opressão.
Poderia falar sobre festas populares, museus, arquivos, movimentos sociais, escolas, igrejas e muito mais. Em todas essas dimensões, a Antropologia pode atuar e temos antropólogas e antropólogos atuando em Mato Grosso do Sul, inclusive em órgãos de governo e na iniciativa privada. Fica aqui o convite a descobrir e produzir novos mundos a partir da Antropologia, por meio do trabalho de campo e do contato com as diferenças, em Mato Grosso do Sul.
Por Guilherme R. Passamani, Professor de Antropologia da UFMS, [email protected]
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.
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