Caranguejos-pedra são seres peculiares. Eles, que quase não se destacam, são especiais. Do gênero “Dilocarcinus Pagei”, esses vermelhinhos vivem entre pedras, esgueirando-se e confundindo predadores. Habitam o litoral e alguns estados do interior do Brasil, como o MS. São marrentos. Assustam pelas grandes pinças, mas elas são para apanhar alimentos no fundo da lama dos mangues. Dos artistas que os elogiam, destaca-se Chico Science, do Recife, cujo Mangue Beat homenageia esses seres que, alimentando-se de coisas consideradas rejeitos por outros organismos, são úteis para a manutenção de um ecossistema saudável.
Este texto não é sobre caranguejos, nem sobre o maracatu atômico. É sobre uma modalidade de prática filosófica de caminhadores de lado, como esses encantadores da lama que embelezam manguezais e florestas do Brasil com a sua linda feiúra. É um tipo de atividade que existe em todo o mundo, onde a filosofia se encontra com outros fazeres humanos, na fronteira da produção, consumo e circulação cultural. Aqui em Campo Grande temos um Laboratório que funciona nessas gretas e interstícios, denominado “LabuH” – Laboratório de Humanidades. Não, leitor, você não leu errado. Parte da sigla se escreve da direita para a esquerda, assinalando a sua vocação de fuçar e inventar relações ao mesmo tempo artísticas, políticas e filosóficas. E falamos de “Humanidades” porque trabalhamos na perspectiva de uma pobreza programática: não se trata de uma pobreza que se assinala como falta de recursos. Usamos o mínimo, para nos concentrarmos sobre o encontro, a plena presença nas discussões, e a interação com linguagens clássicas e contemporâneas, em busca de diálogo e expressão ou validação acadêmica. Dialogamos com literatura, música local, cinema, organizando debates, e até mesmo nos envolvemos em produções mais arriscadas, como na série “Van Filosofia”, que busca trazer luzes da tradição filosófica para discussões cotidianas.
Não se trata de enfeitar com belas palavras o pensamento alheio. A ideia é profunda e dialoga com a tradição analítica, evocando nomes como Avrum Stroll ou Jean-Luc Marion. Na superfície das práticas, nas pequenas materialidades de quem lava louça, existe matéria de filosofia. Ali nascemos e fermentamos a reflexão. Nessas práticas, em textos inspiradores nas atividades que retroalimentam essa experiência, a da relação entre a criatividade das humanidades e o rigor das construções intelectuais. Como os caranguejinhos, nosso Laboratório vive no mangue, trafega entre rejeitos, mas alimenta-se de humanidades. E contribui para o ambiente, devolvendo ao sistema e criticando esse mesmo nosso sistema-mundo, sistema-terra ou sistemas de cultura.
Como os caranguejos, não enfrentamos predadores em ringues. Essencialmente, desenvolvemos a esquiva e ressignificação. Mas não fugimos de predadores, como por exemplo, os sistemas e os núcleos de ideias baseados na competição. Afirmamos a importância do cooperar, da lenta consciência, do musgo que cresce no céu da boca, antes de meter a boca no mundo. Assim, talvez, ajudamos seres humanos a entender que predar pode ser uma arte ou um traço que define muitas espécies animais. Mas a espécie humana, essa possui cérebro e coordenação motora por diversos motivos, um dos quais é para não precisar mais ser apenas predador. Estamos no instagram e no Facebook. Mas vivemos em projetos de iniciação científica e em teatro, cinema, praça ou barzinho perto de você.
Josemar de Campos Maciel é Doutor em Psicologia (PUC-Campinas) e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UCDB. Email: [email protected]
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.