Os animais são estudados nas ciências humanas há tempos. Próximo ao fim do ano, eu tenho refletido sobre as renas que desfilam na Parada Natalina em Campo Grande. Elas são personagens infláveis vestidos por artistas no evento organizado pela prefeitura. E o público aumenta a cada ano. As renas são o maior sucesso, superando até mesmo o Papai Noel. Por isso, não é à toa que autoridades políticas desfilam do lado delas, em busca de popularidade e reconhecimento.
O olhar sociológico tende a ser treinado para transformar experiências cotidianas em possibilidades de crítica social, no intuito de nos mostrar como somos produzidos de forma desigual, via relações de poder, normas e instituições sociais. Mas o que as renas têm a ver com isso? Nós aprendemos e ensinamos sobre diferenças sociais por meio de artefatos culturais. As renas infláveis são exemplos disso.
Em dezembro de 2021, apenas uma participava nesse evento, dançando ao som da banda municipal. O sucesso foi grande por ser um estilo popular e racializado como o funk, que quebrava a mesmice da colonialidade branca dos símbolos e das representações nórdicas natalinas universalizadas. Aquela rena, sozinha, não tinha gênero nem sexualidade. Contudo, sabemos que o personagem, popularizado como veado, está no imaginário brasileiro ligado à homossexualidade. Assim, no ano passado, a prefeitura resolveu arrumar um par romântico para ela.
O sucesso foi tanto que, a despeito da laicidade do Estado, a prefeitura promoveu o casamento religioso monogâmico com a presença de um personagem “urso-padre” na Cidade do Natal. O Sr. Reno de gravata fálica escura e a Sra. Rena de véu branco trocaram alianças e se beijaram após o narrador contar, em meio ao riso do público, que ela conquistou o marido pelo estômago. Tudo produzido, registrado e divulgado nas redes oficiais do governo municipal.
Alocar as aptidões femininas ao espaço privado e com a função de sedução do parceiro masculino é um tipo de violência de gênero e sexualidade. A desigualdade salarial e a ausência de mulheres em espaços públicos de poder são um dos efeitos disso. Estudos sobre feminicídio apontam para os riscos desse tipo de discurso machista. A experiência de gênero e sexualidade das renas ganha novos episódios com a gravidez pós-casamento e com o chá revelação, a fim de descobrir o sexo do filhote, como parte das atividades comemorativas do Dia das Crianças 2023.
O chá revelação do sexo, portanto, da expectativa normativa de humanização pelo essencialismo do binarismo de gênero e pela heterossexualidade compulsória, como se sabe, é um dos eventos perigosos às infâncias. A sociologia pode nos ajudar a criticar a desigualdade no modo como ela é produzida. Nesse caso, como se fosse só entretenimento e comemoração, ao que ela tende a ameaçar: a criança. As renas natalinas precisam ser libertadas da violência de gênero e sexualidade. Isso pode resultar em uma sociedade humanizada de forma menos desigual.
Por – Tiago Duque
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