Artigo: ‘Ao redor do buraco, tudo é beira’

Andre Koutchin
Foto: Divulgação

Conta-se, a respeito de Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo do Ocidente, que de tanto olhar as estrelas caiu em um buraco e que, com isso, as pessoas ao seu redor o zombavam, dizendo que tentando conhecer as coisas no céu sequer acertava onde pisar.

Ainda na Antiguidade, cerca de um século depois de Tales, Sócrates narrava a seus interlocutores – e isso no diálogo A República – talvez, uma das mais belas e comentadas páginas da história da filosofia ocidental: a célebre alegoria da caverna. Na cena, prisioneiros acorrentados no fundo de uma caverna somente podiam contemplar sombras e ouvir ecos dos objetos que originavam tais projeções, sem jamais tê-los podido ver efetivamente. Nesse sentido, acreditavam que essas imagens projetadas eram a única realidade existente. Como escravos acorrentados, viviam apenas as imagens da vida e não a vida em si.

No entanto, pergunta Sócrates, se libertássemos um desses prisioneiros, se arrebentássemos as suas correntes e o fizéssemos escalar a difícil vereda que o levaria para fora dessa morada subterrânea, o que aconteceria? Após um paciente processo, um longo e trabalhoso caminho, o prisioneiro liberto perceberia a grandeza de um astro, o Sol, que determinava os dias e as estações dos anos, que governava todo o mundo visível e que, de certa maneira, era a causa de todas as coisas que contemplamos. Perceberia, então, que o Sol iluminava a todos os objetos que, anteriormente, ele próprio e seus companheiros contemplavam apenas em sombras no interior da caverna.

Mas, se porventura o prisioneiro liberto voltasse à caverna e tivesse que concorrer com os cativos a respeito da identificação daquelas sombras, o que também aconteceria? Inicialmente, por estar agora acostumado com a luz, veria menos do que eles, na escuridão. Estes então o zombariam, o ridicularizariam e diriam que sair para o exterior de nada valeria, que fora da caverna nada os homens aprendiam e que, até pelo contrário, os homens retornariam enxergando ainda menos. Evidentemente, prossegue Sócrates, tendo paciência e determinação, aquele que já contemplara o Sol, ao se reacostumar com as trevas, logo se movimentaria melhor e de maneira mais hábil ali, no mundo subterrâneo, demonstrando finalmente tais vantagens aos demais prisioneiros.

Os exemplos de Tales e de Sócrates nos servem aqui para expressar, simbolicamente, a árdua trajetória dos filósofos: em primeiro lugar, é com muita dificuldade que estes se libertam do mundo das imagens; quando livres, tendo contemplado os objetos em sua verdadeira natureza, não desejam mais retornar à ilusão das trevas. Abandonam seus antigos companheiros e sua sabedoria, restrita apenas a si próprios, de nada vale. Porém, se como ocorrera também com o suposto prisioneiro liberto, quando às vezes um filósofo retorna às trevas, desacostumado com a escuridão, vê menos que os outros prisioneiros e é zombado e ridicularizado por estes.

É preciso paciência e determinação para expor o que se esconde por trás de um mundo de imagens como o nosso. Mas, é preciso, também, reconhecer que um sábio, mas solitário prisioneiro que se liberta, não resolve o drama de tantos outros companheiros ainda aprisionados. É preciso retornar e reconhecer que lá, no fundo da caverna, estamos todos – filósofos ou não – dentro de um buraco (os que sabem disso e os que não). Precisamos olhar para cima, organizarmos a saída, e após um longo e trabalhoso caminho, contemplarmos uma vida menos desigual, lembrando aos poucos que estão ali fora e que se recusaram a descer que, afinal, como diria Ariano Suassuna, “ao redor do buraco, tudo é beira”.

Por Andre Koutchin, doutor em filosofia pela Unicamp. Atualmente, é professor associado na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Fach/UFMS), onde coordena o curso de licenciatura em filosofia. 

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