1ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos de MS promove cultura, debate e remição de pena pela sétima arte
O cinema tem o poder singular de espelhar realidades, provocar reflexões e criar pontes entre histórias que, muitas vezes, se parecem com as nossas. Mais do que entretenimento, ele se transforma em uma linguagem educativa, capaz de ensinar, sensibilizar e inspirar novas percepções sobre a vida e as escolhas que fazemos.
Duas unidades penais de Mato Grosso do Sul passam a integrar, a partir desta última segunda-feira (14), uma ação inédita que aposta no poder transformador do cinema: a 1ª Mostra Cinema e Direitos Humanos no Sistema Prisional. A iniciativa leva filmes, cultura e reflexão crítica a pessoas privadas de liberdade, utilizando a linguagem da sétima arte como ferramenta de conscientização e dignidade.
A atividade faz parte da 14ª Mostra Cinema e Direitos Humanos, promovida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, sob o tema “Viver com dignidade é direito humano”. Em Campo Grande, a programação foi realizada nos dias 14 e 15 de julho, na Penitenciária Masculina de Regime Fechado da Gameleira II, e seguiu nos dias 16 e a última sessão acontecendo hoje, 17 de julho no Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”.
Ao todo, 70 custodiados, entre homens e mulheres, participaram das sessões, que ofereceram não apenas entretenimento, mas também oportunidades de escuta, debate e ressignificação pessoal a partir das narrativas apresentadas em tela.

Foto: Comunicação Agepen/Divulgação
Muito além das grades
Em Mato Grosso do Sul, a realização da Mostra é coordenada pela Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário), por meio da Diretoria de Assistência Penitenciária, com atuação direta da Divisão de Assistência Educacional. A iniciativa conta ainda com o apoio institucional do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Tribunal de Justiça de MS, fortalecendo a articulação entre justiça, cultura e políticas públicas.
Com a exibição de curtas-metragens e rodas de conversa, a Mostra busca fomentar o pensamento crítico, o diálogo sobre direitos humanos e a valorização da dignidade da pessoa privada de liberdade. Os filmes, com duração média entre 18 e 20 minutos, são seguidos por debates educativos conduzidos por representantes da Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais), promovendo um espaço de escuta, reflexão e construção coletiva de conhecimento.
A participação dos custodiados é voluntária e pode gerar remição de pena, conforme previsto na Lei de Execução Penal. A ação também integra o Plano Nacional Pena Justa, que visa ampliar o acesso à cultura, à educação e à cidadania dentro do sistema prisional brasileiro.
7º arte como recomeço
Em entrevista ao jornal O Estado, o servidor da Senappen, Carlos André dos Santos Pereira, responsável por conduzir os debates e as atividades nas unidades prisionais de Mato Grosso do Sul, destacou o caráter inédito e transformador da iniciativa.
“Trata-se de uma ação inédita que reafirma o compromisso do Estado brasileiro com a dignidade da pessoa humana, mesmo diante do contexto de privação de liberdade. A Mostra alcança milhares de pessoas privadas de liberdade em todo o país, por meio de sessões de filmes seguidas de rodas de conversa. É um espaço de diálogo, de reconhecimento da identidade e de valorização da escuta, elementos fundamentais para o processo de ressocialização para a construção de um ambiente prisional mais humano”, afirma.
A iniciativa representa mais do que uma atividade cultural, é um gesto concreto em direção a um sistema prisional mais justo e humanizado. Para ele, ações como essa fortalecem o compromisso com a construção de políticas penais que coloquem os direitos humanos no centro das práticas institucionais.
“Esse é um passo importante rumo a um sistema prisional mais justo e, inclusive, mais eficiente. O Plano de Pena Justa nos lembra que a pena não deve servir à exclusão, mas sim à reconstrução de vidas. E, nesse contexto, o cinema é mais do que arte, é ponte, é voz, é possibilidade de transformação.Seguimos firmes na construção de políticas penais que respeitam a dignidade humana e renovam a esperança de um novo começo para todas as pessoas em situação de prisão”, destaca.
Cinema como reflexão
Ao final de cada sessão, os reeducandos e reeducandas preenchem um relatório individual, que servirá como base para a concessão da remição de pena pela participação na atividade cultural. Conforme prevê a legislação, será considerado o equivalente a um dia de pena remido a cada 12 horas de participação.
Essa medida está em conformidade com a Resolução nº 391 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e com a Nota Técnica nº 70 da FENAPEN (Federação Nacional das Servidoras e Servidores Penitenciários), que regulamentam a possibilidade de remição por atividades educativas e culturais no sistema prisional.
Para a reportagem, a chefe da Divisão de Assistência Educacional da Agepen, Rita de Cássia Argolo Fonseca, a realização da Mostra representa um marco histórico para o sistema prisional brasileiro. Para ela, a proposta da Mostra vai além da exibição de filmes, mas busca provocar reflexão e diálogo a partir de conteúdos voltados aos direitos humanos em sua totalidade.
“Estamos vivendo um momento histórico no país com a realização da primeira mostra cultural de cinema e direitos humanos dentro do sistema prisional. É um avanço significativo na forma como olhamos para a educação e a cultura no contexto da privação de liberdade. A cada sessão, os participantes são convidados a refletir sobre as temáticas apresentadas. Ao final, haverá debates guiados e proposições reflexivas, pensadas previamente para estimular a construção crítica e o desenvolvimento de um projeto maior, com potencial de atender todo o Brasil e, futuramente, se tornar uma política permanente no sistema prisional”, explica.
Mais do que uma atividade cultural pontual, a iniciativa se apresenta como um processo educativo e formativo com impacto direto na construção de novas perspectivas de vida, o projeto oferece aos custodiados a oportunidade de contribuir ativamente para a formulação de novas políticas públicas, a partir das reflexões geradas pelas sessões e rodas de conversa.
“Nossos custodiados estão em um momento de construção e de proposição de melhorias. Quando eles participam da criação de um novo programa, de uma nova proposta pública, estão contribuindo não apenas para o aperfeiçoamento do sistema prisional, mas também para a sociedade como um todo. Essa contribuição se reflete no futuro processo de reintegração social, impactando seus familiares e ampliando as chances de um retorno mais digno e consciente à vida em liberdade”, complementa Rita.
Relato
Durante uma das sessões, a interna D.G, de 31 anos, destacou a importância da iniciativa como forma de acesso ao conhecimento, reflexão e bem-estar. Apaixonada por cinema antes de sua prisão, ela relembrou com carinho a sensação de assistir a um filme.
“Decidi participar para me desenvolver, aprender mais, ganhar remissão e sair um pouco da rotina. A gente se sente um pouco mais livre. Dá uma sensação boa. Melhor ainda para quem está privado da liberdade”.
Enquanto fazia anotações durante a exibição, D.G. comentou sobre a mensagem do filme, que tratava de temas como racismo, identidade e desigualdade social.
“Falavam sobre cor, quilombos, sobre pessoas humildes… Mostravam que todos são iguais, independentemente da classe social. Isso faz a gente pensar no que vai enfrentar quando sair daqui, no preconceito, no medo, mas também na força que o conhecimento dá pra seguir em frente”. Para ela, a Mostra representa mais do que um momento cultural: é um passo importante na reconstrução da própria história.
Amanda Ferreira