Professora cria projeto de pesquisa para investigar cenário da educação musical inclusiva
O Governo brasileiro define a acessibilidade cultural como “um conjunto de medidas para a eliminação de barreiras e promoção da participação plena das pessoas com deficiência nas políticas, programas, projetos e ações culturais”, que, em tese, garante que as pessoas com deficiências ou mobilidade reduzida possam viver de forma independente e com direitos culturais. Mas, será que isso realmente acontece? Esse é um dos questionamentos feito pela professora Etna Gutierres no projeto de pesquisa ‘Quando Só o Amor Não Basta’.
A pesquisa, conduzida pela professora e pesquisadora de música, quer investigar o cenário da educação musical inclusiva, mapeando experiências e desafios de educadores musicais junto às pessoas com deficiência, com dados inéditos sobre acessibilidade cultural no Brasil.
O foco é entrevistar professores de música de Campo Grande, independente de já ter trabalhado com pessoas com deficiência, ou transtornos de neurodesenvolvimento. ‘Quando Só o Amor Não Basta’ foi aprovado no edital do município, da PNAB (Política Nacional Aldir Blanc), e financiado pelo Governo Federal.
As entrevistas servirão para coletar dados concretos sobre a realidade da atuação docente e do acesso à cultural musical para pessoas com deficiência na cidade — um direito garantido por lei, mas ainda pouco documentado e debatido.

Foto: Acervo Etna Gutierrez
O que é
Para o Jornal O Estado, Etna Gutierrez destaca que a acessibilidade cultural é entendida apenas como o acesso à cultura como participante passivo, e não agente ativo, ou seja, como protagonista ou criador.
“A acessibilidade cultural no Brasil está sendo tratada muitas vezes como o acesso da pessoa com deficiência a uma atividade cultural. Na minha pesquisa, eu acredito que eu vou entender, vou conseguir traçar esse panorama de que, se a pessoa com deficiência está tendo acesso a ter, no caso da cultura na área da música, se ela está tendo aulas de música, o acesso à cultura enquanto pessoa que age, enquanto protagonista dessa ação cultural”.
A iniciativa também parte da constatação de que, apesar dos avanços legais, a presença da pessoa com deficiência na música ainda é pouco visível em editais, políticas públicas e notícias na mídia. “Ao conversar informalmente com professores, percebi respostas evasivas, e entendi que precisávamos ir além da percepção: era necessário reunir dados para ter base para a discussão”, afirma Etna.
O projeto busca entrevistar professores de música de diferentes contextos — escolas, projetos sociais, instituições especializadas e universidades — para entender quais formações, recursos e estratégias estão disponíveis, além de mapear barreiras e boas práticas. “Se eu falar nas redes sociais que professores não sabem dar aulas para alunos atípicos, não quer dizer nada. Mas se eu disser que entrevistei 300 professores e x% não tiveram formação, teremos dados para questionar, propor e ajudar depois. O mundo científico só fala do que se prova”, explica a coordenadora.
“A pessoa que trabalha com deficiência já vai me trazer um cenário real da sua ação e das dificuldades que ela tenha ou não, enquanto dá aula. Já o professor que nunca trabalhou com a pessoa com deficiência vai mostrar o porquê disso. Será que ele não trabalha porque ele não tem formação? Ou será que ele não trabalha por que não houve procura?”, complementa Etna.

A pesquisa O foco é entrevistar professores de música de Campo Grande, independentemente de já terem trabalhado com pessoas com deficiência ou transtornos de neurodesenvolvimento – Foto: Acervo Etna Gutierre
Como fazer
No Brasil, leis e políticas afirmam o direito das pessoas com deficiência à participação plena na vida cultural, em igualdade de oportunidades. No entanto, segundo Etna, esse direito ainda não se reflete amplamente no acesso à educação musical. “Se por um lado vemos mães lutando pelo direito dos filhos à escola regular, e professores reclamando da falta de formação e infraestrutura, imagine quando falamos apenas do acesso à cultura. Como podemos falar sobre o que apenas achamos?”, questiona.
A pesquisadora argumenta que para a educação musical inclusiva deixar de ser exceção e passar a ser uma realidade no Brasil, é preciso entender e tratar a música como algo além de uma recreação, e sim como uma oportunidade de estudo e até mesmo profissionalização.
“Primeiro, [é preciso] presumir competência. Ou seja, você acreditar que aquela pessoa que está ali, ela tem competência para aprender música. Depois, ter ciência de que o que você vai fazer com aquela pessoa, com aquele aluno, não é musicoterapia. Não é um passatempo. Então, você presumir que ele pode e não usar isso como uma terapia. E terceiro, que talvez seja o mais difícil, é ter uma formação mínima que seja, além do amor. Por isso que o título do trabalho é ‘Quando Só o Amor Não Basta’. Então, você tem o amor para trabalhar com aquela pessoa, mas você precisa ter uma formação para isso”.
A professora e pesquisadora deseja que a pesquisa possa, pelo menos de forma indireta, abrir portas e estimular oportunidades, seja para a formação ou para a visibilidade de artistas com deficiência na cena cultural de Campo Grande.
“Se eu conseguir que os professores de música percebam que eles têm esse campo para trabalhar, que as pessoas com deficiência podem e devem ser aceitos nos seus projetos, automaticamente a gente vai ter mais pessoas com deficiência trabalhando nos palcos no futuro, nos espaços culturais e também sendo professores de música”, explica.
“A inclusão musical não é apenas uma questão de boa vontade ou amor — é também sobre preparo, recursos e políticas públicas. E é isso que queremos mostrar com dados e vozes reais”, conclui Etna.
Serviço: Professores e professoras de música de Campo Grande podem contribuir para essa construção de conhecimento respondendo ao formulário disponível em https://forms.gle/xff68GA35PMt4fZH8.
Por Carolina Rampi