Um grito poético e visceral ecoa dos palcos sul-mato-grossenses neste mês com o espetáculo “Puerpéria”, de Déia Fernandes, que estreia dia 22 de novembro em Três Lagoas e segue em circulação por Nova Andradina (27/11), Campo Grande (29/11) e Costa Rica (30/11). A obra mergulha nas violências silenciosas que habitam o corpo e a memória das mulheres, expondo o puerpério como metáfora de um ciclo de opressão, renascimento e libertação.
Com uma escrita fragmentada e simbólica, o espetáculo conduz o público por um percurso sensorial de memórias, delírios e silêncios rasgados, revelando o corpo feminino como campo de batalha e espaço de herança e ruptura. A força poética da dramaturgia se une à iluminação de Bianca Oliveira e à sonoplastia de Pietra Fernandes Brazil, criando uma experiência estética que atravessa emoção e denúncia.
Produzido por Henrique Lopes, Jhayra Kendall, Nizael Almeida e Rodolfo Colino, “Puerpéria” integra o projeto realizado com recursos da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), do Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura (MinC) e da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Mais que espetáculo, a obra é um manifesto artístico sobre o que persiste, mesmo após o parto, mesmo após a queda.

A arte que imita a vida
A diretora e artista Déia Fernandes transformou sua própria vivência em matéria poética e cênica para dar origem ao espetáculo “Puerpéria”. O projeto nasceu de um processo doloroso e íntimo, atravessado por experiências de violência e luto, mas também pela busca de sentido e libertação através da escrita.
Desde 2010, Déia começou a registrar em poemas e crônicas as angústias do corpo e da maternidade, reunindo ao longo dos anos mais de 400 páginas de textos, pesquisas e diálogos com outras mulheres sobre o puerpério, a culpa e a autonomia feminina. Foi desse mergulho pessoal e coletivo que surgiu a necessidade de levar para o palco um grito de resistência e reflexão sobre o corpo da mulher como território político e emocional.
“O Puerpéria vem de um sofrimento meu. Antes mesmo do puerpério, vivi violências dentro de um relacionamento e fui obrigada a engravidar. Comecei a escrever durante a gestação, depois durante o puerpério, e segui escrevendo por anos, foram quase 400 páginas no total. Em 2022, quis voltar ao palco, talvez como uma despedida, e percebi que queria falar sobre essas dores, sobre mulheres que não têm direito sobre o próprio corpo. Mesmo hoje, em 2025, ainda vivemos essa realidade. Então, transformei tudo isso em arte, reunindo minhas poesias e referências de escritoras como Simone de Beauvoir e Florbela Espanca, até que o Puerpéria finalmente nasceu em 2024”, conta Déia Fernandes para a reportagem.
Além de espetáculo, “Puerpéria” se consolidou como um projeto social e de escuta ativa, ampliando o alcance da arte para além dos palcos. A pesquisa que deu origem à obra nasceu do desejo de transformar a dor em diálogo e cena em espaço de acolhimento. Durante esse processo, Déia promoveu encontros com mulheres de diferentes realidades, ouvindo relatos sobre maternidade, violências silenciosas e experiências que, muitas vezes, permanecem invisíveis dentro da rotina.
Esses encontros deram origem às rodas de conversa “Quando os Silêncios Rasgados Ecoam”, uma extensão direta do espetáculo que busca abrir espaço para a troca e a cura coletiva. A cada roda, novas vozes se somavam à construção simbólica do Puerpéria, transformando a criação em um mosaico de vivências femininas. “Foi muito importante que essas rodas acontecessem”, explica Déia, “porque, embora tenha uma história minha ali, há muitas outras histórias. Cada fala dessas mulheres me atravessava e se transformava em parte do espetáculo”.
Espetáculo solo
No palco, “Puerpéria” ganha vida como um solo performático que reflete o corpo coletivo de muitas mulheres. Apesar de ser protagonizado apenas por Déia, o espetáculo envolve uma equipe de 10 profissionais que atuam na construção estética e simbólica da obra. A criação mistura teatro, performance e imersão emocional, com uma abordagem inspirada em mestres como Augusto Boal, Jacob Levy Moreno e Jerzy Grotowski, resultando em uma dramaturgia visceral, carnal e profundamente sensorial.
Para alcançar a densidade necessária, o grupo passou por longos períodos de imersão, oficinas e ensaios intensos, alguns de até doze horas. A trilha sonora, criada em colaboração com a musicista Pietra Fernandes Brazil e o músico Gustavo, de Curitiba, dialoga com a iluminação de Bianca Oliveira, que também atua como coordenadora geral do projeto e pesquisadora das violências de gênero. A preparação emocional tocou toda a equipe, incluindo homens e mulheres, que vivenciaram processos de desconstrução e empatia a partir da temática do espetáculo.
“O Puerpéria é um drama performático, construído a muitas mãos. Embora seja um solo, carrego comigo várias vozes, vários corpos. Cada ensaio é uma imersão profunda, às vezes dolorosa, mas necessária para entender o que é ser mulher nesse mundo. A arte é terapêutica, e o teatro tem sido nosso espaço de cura, tanto para mim quanto para toda a equipe”, explica Déia.
Despedida
Encerrando sua trajetória nos palcos com o espetáculo, Déia transforma sua obra em um legado de arte e escuta feminina. A artista espera que o espetáculo continue reverberando por muitos anos, alcançando especialmente cidades marcadas por altos índices de feminicídio e resistência a temas de gênero. Déia vê nessas conversas um caminho para formar redes de apoio, despertar consciência e preparar jovens para enxergarem a vida com mais autonomia e menos romantização da violência.
“Puerpéria” é o meu último espetáculo como atriz, mas quero que ele continue por muitos anos. Para mim, não é só uma obra artística, é um projeto de transformação: acredito que a arte precisa tocar e mudar vidas. Criei rodas entre mulheres para que possamos parar de nos julgar e começar a nos escutar. Sempre penso nas minhas filhas quando falo de resistência feminina. É doloroso ver quanto ainda enfrentamos rejeições, principalmente em cidades mais conservadoras, só por falar sobre o que é ser mulher. Mas é justamente nesses lugares que quero estar, porque é lá que o Puerpéria precisa ecoar”, destaca.
Serviço: O espetáculo Puerpéria é uma produção da Educ’Art Produções Artísticas, a obra percorre Três Lagoas (22 de novembro), Nova Andradina (27 de novembro), Campo Grande (29 de novembro) e Costa Rica (30 de novembro). Para mais informações sobre ingresso e locais, acesse o perfil no instagram @educart.tl.
Amanda Ferreira

