Livro de receitas ancestrais será lançado neste sábado, como resultado do projeto ‘Comer Bem, Viver Mais’
Você já ouviu falar em hihi? Ou já experimentou a verdadeira chipaguassu? Pois neste sábado (28), receitas ancestrais que atravessam séculos na cultura dos povos originários serão eternizadas em um livro de receitas, elaborado pelas próprias indígenas que participaram do projeto ‘Comer Bem, Viver Mais’.
Após quatro meses de aulas práticas e partilhas, chega ao fim a formação das turmas compostas exclusivamente por mulheres Terena. A cerimônia de encerramento começa às 13h30, no Memorial da Cultura Indígena da Aldeia Marçal de Souza, em Campo Grande. O evento contará com entrega de certificados, degustação de pratos preparados pelas alunas e apresentação do livro de receitas construído durante o curso.
“O curso de gastronomia foi uma experiência nova para mim, porque, além de aprendermos receitas novas, também aprendemos a reutilizar alguns ingredientes que eu achava que não serviam mais para nada. Um exemplo foi a casca da banana-verde. Foram dias de muito aprendizado, porque, além de adquirirmos novos conhecimentos, isso também conta muito no currículo”, relatou uma das participantes, Lauriane Cecé Bardela.
A receita de pão de banana-verde foi elaborada pela jornalista e empresária do Recanto das Ervas, Márcia

Foto: Márcia Chiad/Recanto das Ervas/Divulgação
Chiad. Parceira do projeto, ela compartilhou seus conhecimentos sobre Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) e reaproveitamento de ingredientes naturais.
“Durante o curso, elas perceberam que sabem preparar muitos pratos valorizando o que têm. Acho que a formação trouxe esse sentimento de autenticação da cultura indígena como algo essencial. Elas passaram a valorizar seus conhecimentos e a ter autoestima. O aproveitamento de produtos que já possuíam em casa também foi um momento muito especial”, destacou Chiad.
A formação foi totalmente gratuita e patrocinada pelo Instituto Bia Rabinovich, entidade que viabilizou desde os materiais até os ingredientes utilizados nas aulas. O curso capacitou as participantes para atuar na área da gastronomia, unindo conhecimentos técnicos à valorização da culinária ancestral dos povos originários.
Durante os encontros, as alunas aprenderam desde práticas básicas de higiene, como a correta higienização das mãos e manipulação segura de alimentos, até técnicas mais avançadas de preparo, com receitas elaboradas utilizando ingredientes nobres, como o filé mignon.
Livro de receitas
O lançamento do livro de receitas, que reúne pratos típicos com histórias e significados culturais, trará todos os ingredientes e modos de preparo de iguarias como chipaguassu (bolo de milho), pão de banana-verde, hihi (bolinho de mandioca na folha de bananeira), além de pratos adaptados com base nos saberes ancestrais e ingredientes regionais.
Renascer

Foto: Márcia Chiad/Recanto das Ervas/Divulgação
Idealizado pela chef sul-mato-grossense Danielle Thomaz, o ‘Comer Bem, Viver Mais’ se propôs não apenas a ensinar receitas, mas também a fortalecer vínculos, resgatar memórias e abrir caminhos para a autonomia financeira dessas mulheres. O curso também contou com apoio do Recanto das Ervas e teve aulas ministradas por profissionais que fizeram a ponte entre o saber técnico e a tradição indígena.
O projeto é inspirado em uma iniciativa que Danielle participa em São Paulo, a ‘Quebrada Alimentada’, na comunidade Jardim Julieta, que leva refeições nutritivas e capacita pessoas na área da gastronomia. “Eu trabalho com gastronomia social há cinco anos, quando me mudei para São Paulo. Então, comecei a entender como esse setor funcionava, e perceber também como é um setor que não existe em Mato Grosso do Sul”, explica ao jornal O Estado.
Conforme o último Censo Indígena, realizado em 2022, Mato Grosso do Sul dobrou a população indígena em 12 anos. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), o Estado saiu de 77.025 indígenas em 2010 para 116.346 mil em 2022. Além disso, MS é o terceiro do país com a maior população, atrás apenas do Amazonas e Bahia. Porém, Daniella ressalta que, mesmo com uma população ativa, ainda há preconceito e desafios em torno desses povos.
“Os povos originários estão em uma classificação de vulnerabilidade alta, não só quando se fala em insegurança alimentar como um todo. Existe uma narrativa muito negativa em relação a eles em todo o Estado”.
Como chef, mas também educadora gastronômica, a preocupação da profissional era

Foto: Márcia Chiad/Recanto das Ervas/Divulgação
equilibrar a educação com o conhecimento tradicional que cada participante já tinha.
“Essa era minha maior preocupação. Que a gente não chegasse despejando técnicas, mas sim abertas a utilizar o que elas têm. E nesse caminho a gente percebe que fazemos muitas coisas que vem dessa ancestralidade. As técnicas, embora muito importantes, principalmente para o mercado de trabalho, ficaram em segundo plano”, revela.
“Existe um grande desejo de manter a ancestralidade, mas a urbanização reprime, as obriga a ir deixando de lado. A autoestima é, então, muito afetada”, pontua. “Temos uma psicóloga que as acompanha nesse período do curso, e ela aponta exatamente isso. Muito potencial, mas pouca perspectiva. Isso é muito triste”.
A chef ainda entende que criar o vínculo com as alunas foi um desafio. “É passar a credibilidade e ganhar a confiança da comunidade que não nos conhecia, mas acreditou no que estávamos oferecendo”.
Futuros

Tradição: As aulas do curso fizeram a ponte entre o saber técnico e a tradição indígena Foto: Márcia Chiad/Recanto das Ervas/Divulgação
Danielle acredita que o lançamento do livro servira como resistência e preservação de saberes. “E não só pelas receitas em si, mas pelo empoderamento e valorização da cultura. Mostrar que é possível manter viva essa tradição mesmo com todo o contexto histórico é incrível. E também é uma forma de dar acesso para que as pessoas vejam a riqueza que existe tão próximo de todos e que de certo modo faz parte da parte histórica de todos nós. Para mim, receber as receitas delas, com todo esse peso da ancestralidade e tudo que significa para elas, é muito especial”.
Com a bagagem do projeto de São Paulo, o desejo da chef é expandir. “A ideia agora é que seja um formato parecido com o que faço lá, onde temos a cozinha solidária e ofertamos refeições para esse território que é muito vulnerável em relação à insegurança alimentar. E também fazer uma formação dentro dessa cozinha, como um estágio, com voluntários, que saem preparados para o mercado de trabalho, com vivência na cozinha”, finaliza.
Serviço: O lançamento do livro de receitas indígenas e encerramento do curso de gastronomia do projeto ‘Comer Bem, Viver Mais’, será neste sábado (28), às 13h30, no Memorial da Cultura Indígena da Aldeia Marçal de Souza (Rua Terena, 88, bairro Tiradentes).
Por Carolina Rampi