O cinema, o local em si, nas últimas décadas se tornou cada vez menos acessível para a população no geral. Com o fechamento de locais como o saudoso Cine Campo Grande, que tinha exibições de filmes por menos de R$ 5, localizado no centro da cidade, os cinemas migraram para dentro dos shoppings, onde apenas alguns tipos de públicos tem acesso. Além disso, os preços praticados para assistir a um único filme estão cada vez mais exorbitantes. É essa realidade que o artista, diretor e produtor Mhiguel Horta.
Com quatro longas na carreira e tendo participado de três edições do Festival Latino Americano de Cinema, Horta viu nos bairros periféricos de Campo Grande uma carência de cinema, e não só nas questões das exibições, mas também nas produções. Seu mais novo projeto é exibir filmes para as comunidades, com direito a debate, refrigerante e pipoca para as crianças, de forma gratuita.
“Há muito tempo eu venho fazendo pesquisa nos bairros para os meus roteiros sobre questões sociais como tráfico, contrabando, coisas desse tipo. No Jardim Noroeste, eu fiz uma pesquisa bastante grande onde pude conhecer bem a comunidade. E eu pessoalmente tenho uma tese que é a seguinte: a arte pode tirar qualquer adolescente ou qualquer criança do mundo da violência. Porque essas crianças pedem o lúdico. Quando uma criança é colocada diante de uma agressividade, de uma brutalidade, ela nunca mais será a mesma. Aquilo a marca. A arte pode ser uma maneira interessante, importante de aliviar e trazer para essa criança ou adolescente o lúdico novamente, e o cinema tem essa magia. Eu sinto e vi na aldeia água funda, por exemplo, a necessidade das crianças pelo cinema, o que é, como faz, coisas desse tipo”, explicou o cineasta em entrevista para o jornal O Estado.
A ideia para as exibições começou de forma repentina, apenas com a vontade de levar um pouco de cultura para diferentes parte de Campo Grande. Pelas redes sociais, Horta convocou as associações de moradores.
“A princípio começaria com meu filme, que pode ser exibido sem problemas de classificações, onde filmei no Jardim Noroeste. Depois, sim, ai a gente vai fomentar, através dessa primeira experiencia, a criação de cineclubes em cada bairro. Você precisa apenas de um projetor e uma parede branca, isso é cinema. Precisa desglamourizar o cinema, o tapete vermelho, as grandes produções, isso está caindo por terra; hoje em dia temos o streaming, o celular, varias maneiras de exibir conteúdo audiovisual. Simplificar isso significa espalhar esses conteúdos”, argumenta.
Adversidades
Segundo Horta, os desafios enfrentados na disseminação das culturas da periferia é despertar o próprio interesse da comunidade. Mas a falta de verba, como sempre acontece na arte, também é um empecilho para o crescimento acelerado do projeto.“Não tenho dinheiro, é um projeto completamente voluntário, não tá em edital, não tô ganhando nada com isso. Mas a ideia é, posteriormente, transformar em projeto para que se possa ter um edital, e realizá-lo com perfeição, com maestria, com tudo melhorado. Outra dificuldade que eu encontro em Mato Grosso do Sul, de modo geral, em relação a toda a minha experiência de vida aqui, todo o meu trabalho feito aqui, é a timidez da empresa privada em relação à arte. Eles não são muito eufóricos, não são muito entusiastas das parcerias com a arte. Às vezes você vai num lugar, e tá fazendo uma exibição para uma comunidade simples, se o empresariado ajuda com um lanche, com alguma coisa para as crianças, é maravilhoso. Se você não tem isso, já não fica tão bacana”.
O diretor ressalta que a intenção do projeto não é uma caridade, e sim colocar essa população ao acesso simples e barato a cultura audiovisual, principalmente no futuro, quando ele pretende desenvolver mais projetos voltados as produções de filmes. “A minha ideia também é criar projetos na área do audiovisual onde a cultura desses bairros tenham sua expressão, que aparecem, promover os talentos de cada localidade, de pessoas que querem aprender, mas não tem acesso”, explica.
“Não é uma questão de caridade, é inserir essas pessoas no mercado de trabalho e mostrar para elas outras áreas, como se faz no técnico e intelectual, estimular leitura e estudo. A ideia não é só de filmes, é continuar com oficinas, por exemplo, e quero ver se consigo fazer filmes nas periferias de Campo Grande, onde os moradores são os atores e protagonistas, onde terão suas primeiras experiências”, complementa.
Horta ainda aponto a falta de festivais de cinema levados especificamente para essas regiões. “Eu acho que os festivais de cinema cometem o grande erro de não levar os filmes para as periferias, para os bairros, porque é muito importante isso. Essas pessoas muitas vezes não têm dinheiro para se locomover, ir em um shopping, assistir ao filme numa sala de cinema, e a minha ideia é fazer um grande movimento, da periferia na parte cultural”.
Futuro
Com o crescimento do projeto de exibição, Horta quer que o audiovisual nas periferias vá longe. “A minha intenção é fundar um cine clube em cada bairro. Segundo lugar, preparar, qualificar um grupo de pessoas para trabalharem com cinema. Terceiro, arregimentar pessoas que gostam de escrever, pessoas que saibam se expressar para integrarem as equipes, porque com o tempo a gente pode ir formando essas equipes e despertando nelas mais estudo, mais comprometimento e entendimento da força que tem o cinema nas questões sociais, ideológicas, etc”
Para todos
Horta ainda argumenta que um dos principais pontos para ele da sétima arte é a democratização. “Democratizar o cinema é dar acesso à existência do cinema para pessoas que estão muito afastadas, às vezes, das escolas, das faculdades, das universidades, são trabalhadores, pessoas simples. Essas pessoas, às vezes, não têm esse contato maior, talvez, muitas delas não têm nem acesso, raramente vão ver um filme desses arrasta-quarteirões nos cinemas, com aquela mega publicidade, etc. Mas elas não se inserem no sentido de ‘nós podemos fazer cinema também, nós temos nossas histórias para contar’. Então, a ideia, de modo geral, é democratizar, sim, ao máximo, não só o cinema, mas qualquer conhecimento de arte, como teatro, etc. A gente poderia ter, em Campo Grande, grupos teatrais em cada bairro”.
“E outra observação que eu faço, geralmente o artista e o jogador de futebol não são pessoas da elite, não nascem na elite. A maioria dos artistas nasceu de lares muito pobres e jogadores de futebol idem, jogando na rua. Então, a gente tem que analisar essa questão de que os atores não nascem ricos, não são espetaculares. Eles nascem das periferias. Então, fazer brotar essa cultura da periferia, para ela marcar seu território, mostrar para os outros, mostrar para o mundo o que ela sabe fazer, é extremamente importante”, finaliza.
A próxima exibição será no dia 27 de agosto, às 19h, na Comunidade Indígena Água Funda, com o filme ‘Olhai o silêncio’.
Por Carolina Rampi
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