A cultura em Campo Grande é marcada por artistas que, mesmo diante das dificuldades, resistem às constantes ameaças à arte, transformando um campo minado em um verdadeiro “campo cênico”. Com o objetivo de abordar as questões que permeiam e definem essa realidade, nasce o curta-metragem “Campo Cênico”, um documentário que explora a cena teatral da Capital sul-mato-grossense.
Dirigido por Pedro Miyoshi, o filme tem uma abordagem ensaística e revisita questões contemporâneas do teatro regional, buscando levantar discussões sobre identidade e arte. Com uma duração de 20 minutos, a história segue Rebeca, uma jovem que, em um domingo aparentemente comum, acaba sendo levada por um acaso a visitar um parente distante, com quem não tinha contato há tempos. A partir dessa visita, ela se vê imersa em um universo teatral, estranho e, ao mesmo tempo, familiar.
No filme, foram entrevistados cinco grupos de teatro e circo de Campo Grande: Maracangalha, Teatro Mundo, Grupo de Risco e a companhia “Flor e Espinho”. Os integrantes desses grupos receberam a equipe do documentário em suas sedes e compartilharam suas perspectivas sobre o cenário cênico local. Ao longo da narrativa, o documentário busca resgatar memórias e histórias, refletindo sobre a importância da preservação da cultura popular, especialmente aquela que vai além dos palcos do Teatro Glauce Rocha.
O curta foi financiado pela Lei Paulo Gustavo. A produção do filme é de Érica Oliveira, com Laura Cristina na direção de som, Gabriel Sequeira como assistente de som, Dafne Alana na direção de fotografia e Isabelly da Costa como assistente de fotografia. A montagem ficou a cargo de Gabriel Augusto. O curta tem classificação indicativa livre para todos os públicos.
Campo do Cinema
Para a reportagem, o diretor do curta, Pedro Miyoshi relata que a motivação surgiu de uma experiência simples, mas impactante, quando começou a se envolver mais com o teatro durante uma disciplina sobre direção de elenco na faculdade. Essa experiência inicial despertou o interesse por uma linguagem artística até então pouco explorada, e logo se transformou em um projeto mais profundo.
“O foco da nossa pesquisa era entender os espaços onde o teatro é feito. Cada grupo tem uma relação única com seu local: o Grupo de Risco possui uma sede que mais parece um balcão, o Flor e Espinho se apresenta em locais diversos e o Maracangalha leva suas performances para a rua. Essas diferentes abordagens refletem a diversidade de linguagens e práticas teatrais em Campo Grande”, explica o diretor.
Em Campo Cênico, a proposta era criar um filme que não fosse classificado como um documentário ficcional, mas sim como um ensaio cinematográfico. “A ideia era que o filme parecesse mais um estudo sobre uma questão política e cultural, vista pela perspectiva subjetiva de uma personagem, no caso, a Rebeca”, diz ele. Embora Rebeca seja uma personagem ficcional, a intenção era que o público acreditasse nela como uma pessoa real, imersa no universo do teatro.
A equipe buscou retratar essa proximidade, destacando o teatro intimista da cidade, onde as plateias são menores e o público tem uma relação mais direta com o palco. Para transmitir essa sensação no filme, Miyoshi optou por uma abordagem estética mais íntima, utilizando câmeras digitais mais antigas, com uma qualidade mais sutil e invisível, que aproxima o espectador da peça.”O teatro local tem uma identidade própria, e nossa intenção era não apenas destacar os grupos daqui, mas também refletir sobre a conexão das pessoas com o teatro”, afirma.
A diretora de fotografia Dafne Alana destaca que o processo de criação foi extremamente coletivo, devido à pequena equipe envolvida. Como se tratava de um filme-ensaio, era essencial que direção, montagem e fotografia estivessem em perfeita sincronia.
“A estética das imagens, com câmeras digitais dos anos 2000, as cybershots, contribui para o eu-lírico de Rebeca, trazendo um tom de nostalgia e curiosidade. Ela não apenas vê, mas observa, questiona e reflete”, explica Dafne. Além disso, a cor laranja foi escolhida para o filme desde o início, pois é forte, imaginativa, quente e de grande destaque.
Para ela, a fotografia complementa a atmosfera do curta, trabalhando em harmonia com a montagem para criar uma sensação de fluidez, onde as imagens, compostas por peças coloridas e intercaladas com falas diretas das entrevistas, buscam sempre focar em quem está se comunicando com a personagem Rebeca. “A imagem só funciona porque vem acompanhada dos cortes conscientes da montagem e da narração, criando um quase fluxo de consciência”, conclui a diretora.
Durante a produção de Campo Cênico, a colaboração entre a direção de som, a equipe de fotografia e a direção foi fundamental para criar uma experiência imersiva para o público. Segundo Gabriel Sequeira assistente de som do filme, o objetivo era tornar o som o mais invisível e orgânico possível, especialmente nas entrevistas.
“Um som bem feito é aquele que o espectador esquece que está ali. As entrevistas permitem somar ou exemplificar de alguma forma as falas da protagonista do filme. Sua aparição flutua com a narrativa e é pontualmente trazido à tona. Sempre está ali de fundo, seja com um fundo musical, falas dos personagens das peças ou os aplausos do público. Serve para nos lembrar que o teatro é algo vivo e se torna mais recorrente conforme a protagonista descobre mais sobre o próprio teatro””, afirma Sequeira.
Campo dos Personagens
Yago Garcia, integrante do Teatral Grupo de Risco, contou suas reflexões sobre o corpo do artista em uma entrevista para “Campo Cênico”. Para ele, ser ator vai além de apenas subir no palco; é sobre estar em constante ação, com um corpo preparado para comunicar algo essencial.
“É um corpo que precisa estar afinado, como um instrumento. O ator precisa estar dizendo algo com seu corpo. Tudo o que fazemos em cena é observado, e o público consegue perceber quando o ator está fragilizado. Por isso, quando o ator se prepara, ele deve estar completamente consciente de tudo. Ele precisa saber exatamente o que vai fazer, entender que há uma luz sobre ele e que, em determinado momento, uma música entrará. Esse corpo precisa estar o tempo todo ligado, pronto para reagir e se adaptar”.
Fernando Cruz, integrante do grupo Maracangalha, também aborda a questão sobre o papel social e político do teatro durante o curta. Para ele, o teatro, originalmente nascido nas ruas, retoma esse espaço como um ato de transgressão e resistência, frequentemente ligado a manifestações políticas.
“O que mais me dá prazer e a sensação de que o teatro cumpre seu papel social, histórico, humano, afetivo e ético, é quando ele está na rua. Estamos todos juntos e ele é feito para todos, com todos. Não há iluminação, nem glamour. O teatro é um ofício, um trabalho, assim como o do pedreiro, do sapateiro, do balconista. Todos nós temos uma função social semelhante, ainda que as formas de trabalho sejam diferentes”, afirma Fernando.
Anderson Lima, da Cia de Teatro e Circo Flor e Espinho, explica durante o documentário que a cidade ainda está em processo de construção de uma identidade teatral sólida, com grupos que exploram uma linguagem híbrida, sem se restringir a um único estilo.
“A cena local é um espaço de busca e de fazer diferente do teatro de bilheteria, com cada grupo desenvolvendo sua própria proposta. Nosso foco é buscar financiamento do governo para atuar na periferia, onde o acesso ao teatro é limitado”, conclui Anderson.
A exibição do curta aconteceu em sessões itinerantes, com cada dia sendo realizado em uma das sedes dos grupos de teatro entrevistados. A primeira exibição ocorreu na última sexta-feira (7), no Teatro Grupo de Risco, seguida por sessões no domingo, 9 de março, e na segunda-feira, no Teatro Flor de Espinho. A próxima exibição será anunciada em breve sendo planejada para ampliar a circulação do documentário, com foco em exibições em escolas e festivais de cinema.
Amanda Ferreira