Lá nos anos 1937, nascia a história em quadrinhos ‘Garra Cinzenta’, criada por Francisco Armond e ilustrada por Renato Silva, publicada como suplemente de ‘A Gazetinha’. A história é considera como a pioneira no gênero de horror nas HQs nacionais, com uma trama que mesclava o policial, noir, fantasia e ficção cientifica. Bebendo desta fonte, nasce a HQ ‘Avantesma’, de Mhorgana Alessandra e ilustração de João Rampi.
‘Avantesma’ mergulha no horror urbano e nas sombras do bairro Lagoinha, em Belo Horizonte. A obra traz terror psicológico e suspense investigativo para as páginas das histórias em quadrinhos, com uma mistura de realidade e ficção em um estilo noir e expressionista. A obra será lançada em dezembro na CCXP, com distribuição e está em financiamento coletivo no catarse.
Ambientada no emblemático bairro da Lagoinha, conhecido por sua história marcada por profundas transformações sociais e sua atmosfera misteriosa, Avantesma acompanha a trajetória do Investigador Mário, um policial de passado duvidoso que se vê envolvido em uma investigação sobre uma entidade sobrenatural que assombra a região. Conforme mergulha nos segredos do bairro, Mário se depara com memórias enterradas, episódios de violência histórica e fantasmas — reais e simbólicos — que questionam a própria natureza da verdade e da culpa.
A HQ nasceu do interesse de Mhorgana Alessandra em explorar o horror urbano a partir de lendas e mitos locais, mesclando investigação policial com elementos fantásticos e psicológicos. A narrativa foi construída com base em pesquisa documental e referências às lendas urbanas de Belo Horizonte.
“Escolhi a Lagoinha porque ela é um bairro que carrega a história viva de Belo Horizonte. A atmosfera densa e os contrastes do bairro me permitiram criar uma narrativa que mistura realidade e ficção, tornando o medo algo reconhecível, mas inquietante”, disse Mhorgana para o Jornal O Estado.
Segundo a autora, essa pesquisa envolveu um apanhado de estudo histórico, entrevistas, análise de documentos, jornais antigos e registros públicos que envolviam o bairro, principalmente nos quesitos de crimes e tragédias.
“Paralelamente, investiguei lendas urbanas, relatos orais e histórias transmitidas pelos moradores, buscando elementos que pudessem ser reinterpretados no contexto do horror urbano. O objetivo foi criar uma narrativa fundamentada, que respeitasse o imaginário coletivo da cidade e, ao mesmo tempo, permitisse a inserção de elementos sobrenaturais de forma crível e impactante”.
Inspiração
Em preto e branco, traços forte e uma estética noir – subgênero ligado aos filmes policiais, influenciado pelas sombras do expressionismo alemão, com histórias sobre anti-heróis, crimes, mulheres fatais e intrigas – a autora destaca que a obra foi construída com uma mistura de influências.
“Visualmente, busquei referências do expressionismo alemão e estética noir, com ângulos dramáticos, luz e sombra, que contribuiu para o clima de investigação e mistério. Literariamente, autores de horror psicológico, como Lovecraft e Poe, e também obras de terror urbano contemporâneo, foram fundamentais para estabelecer o ritmo e a densidade narrativa”.
O professor e ilustrador, membro do NuPeq (Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), mestre em Letras pela UEMS (2024), Especialista em Arte e suas linguagens pela IESF (2011), João Rampi foi o responsável por dar vida ao olhar e obra de Mhorgana. Para criar Avantesma ele se inspirou nos quadrinhos de terror nacional dos anos 1970 e 1980, e em gibis símbolos do gênero como ‘Calafrio’ e ‘Mestres do Terror’
“Essas revistas tinham grandes autores e desenhistas, então nos inspiramos neles, com traços semelhantes, principalmente o noir, com a estética do preto e branco e capas coloridas. Foram essas as nossas inspirações. A Mhorgana já é uma escritora de terror a um bom tempo, mas eu trabalho principalmente com quadrinhos institucionais, ainda não havia trabalhado com terror. Foi um novo desafio trabalhar com esse estilo”, explicou o ilustrador à reportagem. Ambos fazem parte da NuPeq, onde firmaram a parceria.
Terror além do susto
Mais do que provocar sustos, Avantesma propõe reflexões sobre as cicatrizes sociais e os fantasmas simbólicos da cidade. Para Mhorgana, o terror mostra o que nos causa medo, mas muitas vezes esse medo é apenas simbólico.
“Em Avantesma, o horror urbano reflete traumas históricos, desigualdades e violências que atravessam gerações. Ao incorporar esses elementos de forma metafórica, a HQ permite ao leitor confrontar aspectos sociais e políticos que, de outra forma, poderiam passar despercebidos. O terror se torna, assim, uma lente para entender a cidade, suas memórias e suas cicatrizes, tornando o medo também uma forma de reflexão crítica”, disse.
“O terror urbano apresentado na história, vai além das características que conhecemos do mesmo, que lida com questões ligadas a violência urbana, exclusão e temas atuais. Nessa HQ apresentamos elementos do terror clássico como criaturas sobrenaturais e ambientes que remetem ao passo do personagem. Bem como as características visuais do claro e escuro bem marcados nas páginas, que dão espaço para uma interpretação do leitor, que são características mais clássicas do terror nas HQs”, complementa Rampi.
Do Brasil
No cenário nacional, Mhorgana acredita que a obra ocupa um local de exploração no gênero do horror urbano e psicológico, que pode dialogar com a realidade brasileira, principalmente com a rica gama de lendas brasileiras existentes.
“Vejo a HQ como parte de um movimento crescente de autores nacionais que buscam traduzir experiências, memórias e histórias do país em narrativas de horror. Minha expectativa é que a obra inspire outros autores, crie pontes entre histórias urbanas e sobrenaturais e contribua para consolidar o gênero dentro das HQs brasileiras, principalmente independentes, mostrando que o horror pode ser profundamente brasileiro, realista e simbólico ao mesmo tempo”.
Já no âmbito sul-mato-grossense, Rampi comenta que todo trabalho de ilustração e criação visual é “autobiográfico”, de algum jeito.
“Apesar do roteiro nos apresentar o local e suas características, o artista sempre carrega em seu trabalho questões, imagens e influências. De onde se localiza. Nesse caso em si as ruas de Campo Grande se identificam muito com as ruas da cidade que acontece a aventura, principalmente a noite. Além do que o sobrenatural permeia toda nossa região sul-mato-grossense, com nossas lendas e histórias de fronteira. Esses elementos têm muito a ver com a história apresentada em Avantesma”, finaliza.
Com arte densa, atmosfera carregada e estrutura narrativa não linear, Avantesma propõe uma experiência visual e sensorial que vai além do susto: convida o leitor a refletir sobre as cicatrizes sociais, os silêncios da cidade e os fantasmas que habitam todos nós.
Para apoiar o projeto, acesse o link https://www.catarse.me/avantesma, que possui diversos pacotes com conteúdos exclusivos.
Por Carolina Rampi
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