O legado da escritora, musicista e ativista cultural, que foi a primeira mulher negra a se tornar imortal na Academia de Letras de MS
Nascida em 1952 e residente em Campo Grande, Lenilde Ramos é escritora, musicista e ativista cultural, eleita a primeira mulher negra Imortal na Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, destacou-se como uma autêntica representante da cultura no Estado. Suas produções literárias incluem obras como “História sem nome – Lembranças de uma menina quase gêmea”, “Storia senza nome” (em edição italiana), “Imagens e Palavras” e “Do Baú da Tia Lê – Crônicas”. Lenilde também contribuiu para o capítulo sobre o saudoso escritor e historiador Paulo Coelho Machado no livro “Vozes da Literatura” (FCMS, 2014), oferecendo perspectivas biográficas significativas.
Em uma entrevista exclusiva ao Jornal O Estado, a escritora aprofunda sua jornada, destacando vitórias e desafios ao longo dos anos. A arte musical, que floresceu aos 7 anos com uma sanfoninha presenteada por seu pai, permanece uma constante em sua vida artística. Ao ser questionada sobre como essa paixão pela música se desenvolveu ao longo de mais de 50 anos de carreira, ela revela: “Tive o privilégio de nascer em uma casa onde a arte e a cultura faziam parte do dia a dia. Para mim era normal aprender a tocar instrumentos, cantar, ler, escrever poesia.”
A sanfona, instrumento que a acompanha desde os 5 anos, não é apenas uma peça musical em sua jornada; é um símbolo prático de sua arte, sempre presente e pronta para ecoar os sons de Mato Grosso do Sul ao redor do mundo. Em suas palavras: “A sanfona tem seu lado prático porque a gente pode carregar. Ela está comigo desde os 5 anos”.
Multiartista
O equilíbrio entre suas facetas artísticas — escritora, musicista e ativista cultural — se revela como uma dança harmônica, um verdadeiro trio onde cada componente desempenha um papel vital. “A música, a produção cultural e a literatura, nessa ordem, sempre estiveram presentes em minha vida e estão até hoje. “Comecei com a música e ela me levou para a criação de projetos e a organização de eventos. Sempre gostei de escrever e, com o tempo, essa arte despertou a escritora. Até hoje esse trio está bem vivo e me acompanha.”
Ao mergulharmos nas páginas de suas obras literárias, “História sem nome – Lembranças de uma menina quase gêmea” e “Do Baú da Tia Lê – Crônicas”, somos conduzidos a um universo onde a ficção cede espaço à realidade.
“Meu trabalho literário tem o pé no real. Não sei fazer ficção e admiro quem faz. Então, tudo o que escrevo tem ligação profunda com fatos e personagens de MS. Minha música e minha escrita estão muito ligadas porque a base delas é a realidade. Minhas letras e meus escritos falam de Bonito, da festa de São João de Corumbá e de coisas que vejo em fatos da vida.”
Nessas narrativas, somos guiados pelas tramas da vida real, pela biografia que se entrelaça com as complexidades da hanseníase em seu estado natal. “História sem Nome” não é apenas um livro; é uma ponte para compreender a realidade, um testemunho vivo do impacto da hanseníase na região. Em contraste, “Do Baú da Tia Lê” é uma coleção de memórias, um mergulho na cultura e política, embalado por crônicas com uma pitada de humor que refletem a perspectiva única da autora.
Sua contribuição à coleção “Vozes da Literatura”, onde apresentou aspectos biográficos do renomado escritor e historiador Paulo Coelho Machado, destaca-se como um tributo à memória e à cultura. “Ele foi um grande incentivo para meu perfil de escritora memorialista.”
Legado cultural
Seu legado cultural e artístico, moldado ao longo de décadas, não é apenas uma coleção de obras, mas uma contribuição viva à identidade cultural de Mato Grosso do Sul. “É uma honra falar de legado e uma responsabilidade também, porque significa que seu trabalho serviu para alguma coisa. Por isso preciso me cuidar, ter saúde e disposição para registrar o máximo que eu puder da história cultural de Mato Grosso do Sul para as próximas gerações.” relata Ramos.
Ao discutir suas contribuições para a cena cultural e literária do estado, a artista pondera sobre o equilíbrio entre produção e divulgação. “Isso acontece à medida em que você compartilha seu trabalho com a cena cultural. Muitas vezes fico mais ligada em produzir do que em divulgar. Esse é um pecado que confesso: preciso fazer com que meu trabalho chegue mais perto das pessoas.”
Eleita imortal pela Academia SulMato-Grossense de Letras em 2019, a artista revela ter vencido uma eleição acirrada. “Para mim, a Academia era o ambiente da elite e dos personagens da história de MS e eu me vejo como uma mulher comum, do povo. Minha eleição foi muito disputada com outros candidatos desse perfil e fiquei feliz em saber que fui votada pelo trabalho dedicado à cultura e, claro, por meu trabalho literário. Vale dizer que sou a primeira mulher negra a fazer parte da Academia.”
As experiências internacionais de Lenilde se transformam em um capítulo adicional em seu livro de vivências, onde sua música e literatura tornam-se embaixadoras culturais de sua terra natal. É a representação viva de como as fronteiras geográficas não conseguem conter a força da expressão artística de Ramos. “Não viajei tanto assim, mas tive oportunidade de estar em alguns países da América do Sul, da Europa e também os Estados Unidos. Nunca fui de turista. Sempre foi a arte que me levou a eles.”
Dia da Mulher
No Dia Internacional da Mulher, a artista reflete sobre seu papel como mulher na produção cultural e os desafios enfrentados. “A mensagem que deixo é que se preparem para enfrentar o mundo, para não serem usadas pelo mercado de trabalho nem subjugadas por interesses que não sejam os seus. Mulher tem que aprender a se valorizar e a se respeitar de todas as formas”, ressalta.
Projetando-se no futuro, ela revela sua reorganização artística, onde a literatura ocupará um papel mais proeminente em sua vida cotidiana. “Meu projeto futuro já está acontecendo. Estou com 72 anos e chegou a hora de reorganizar o trio: música, produção cultural e literatura. Daqui pra frente, a literatura passa a ter um peso maior no meu dia a dia. Não me vejo tocando sanfona aos 80 anos, nem produzindo eventos, mas sim, escrevendo muito. Para 2024, já tenho convite para tocar em um festival na Espanha e divulgar um livro na Itália. E o Mato Grosso do Sul sempre vai comigo”, destaca.
Essa conexão profunda entre suas diversas expressões artísticas destaca a versatilidade da imortal da palavra. Sua música não é apenas uma melodia, mas a essência que a conduziu para além do palco, criando eventos culturais e, eventualmente, inspirando-a a transformar-se em uma escritora. Lenilde, não apenas, compartilha sua história, mas se posiciona como uma voz contundente, instigando a reflexão sobre o papel das mulheres na sociedade e o caminho a ser trilhado para uma igualdade genuína.
Por Amanda Ferreira
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