Há diversos relatos na internet, de pessoas que tiveram experiências desastrosas de primeiros encontros, seja por um local ruim, ou companhia desagradável. Mas ninguém irá superar Cheryl Bradshaw, a protagonista do filme ‘A Garota da Vez’, que ao participar de um programa televisivo de namoro no fim dos anos 1970, tem o azar de escolher como pretendente, um serial killer disfarçado.
O filme traz a estreia da atriz Anna Kendrick (‘A Escolha Perfeita’) como diretora, além de atuar como Cheryl, uma atriz iniciante de Hollywood, solteira, que busca o amor no famoso programa de TV ‘The Dating Game’, além de tentar alavancar a carreira e tentar ser ‘vista’. Durante a seleção, ela escolhe o solteiro número três, Rodney Alcala. Mas, o suporto fotógrafo, na verdade, é uma faixada para sua verdadeira face: a de um serial killer, responsável pelo assassinato de diversas mulheres. Quando escolhido, os protagonistas começam um jogo de gato e rato, que poderá custar a vida de Cheryl.
Até aí, a coisa já está assustadora. Mas o thriller psicológico é baseado em uma história real! O programa, a protagonista, o serial killer e sua participação na televisão, tudo aconteceu na realidade, em mais um caso bizarro de crimes norte-americanos; o filme irá mostrar então como a aparência pode enganar, e como o mal poderá se esconder por trás de uma fachada inofensiva.
Daniel Zovatto (‘O Exorcista do Papa’) interpreta o serial killer, e se junta a Kendrick para protagonizar o longa, que também traz Nicolette Robinson, Autumn Best, Tony Hale, Kelley Jakle, Max Lloyd-Jones e Dylan Schmid e roteiro assinado por Ian MacAllister McDonald. Com estreia prevista para esta quinta-feira (10), a partir do dia 18 de outubro o longa-metragem estará disponível na plataforma Netflix, mas ainda sem previsão de vir para a plataforma no Brasil.
Inclusive, o streaming arrematou ‘A Garota da Vez’ após o longa ser exibido no Festival de Cinema de Toronto no ano passado, e animar a crítica especializada norte-americana, o que rendeu 90% de aprovação no Rotten Tomatoes.
O real ‘Dating Game’
Em 1978, a televisão dos Estados Unidos – do mundo todo, aliás – era invadida pelos programas de auditório, sendo o ‘The Dating Game’ um dos mais famosos e com grande audiência, criado pelo já notório produtor Chuck Barris. Toda semana, o programa trazia uma mulher em busca de um relacionamento, que precisaria escolher entre três homens que estavam à disposição, sem os ver, com apenas a discrição divulgada. A aparência do escolhido só seria divulgada no fim da atração, e o novo casal iria para uma viagem romântica com tudo pago.
Entretanto, em setembro do mesmo ano, o programa deu uma guinada ao trazer o serial killer Rodney Alcala como candidato. Se passando por um fotógrafo, a mulher da semana, a atriz novata Cheryl Bradshaw escolheu o assassino como par. Mas, Bradshaw desistiu do encontro, por perceber uma aparência estranha no homem escolhido, fato confirmado anos depois pelos outros pretendentes.
Para as autoridades, a rejeição instigou Rodney ainda mais em sua matança. No ano seguinte ele foi preso, e o público descobriu a trajetória de quem até um tempo atrás era apenas um participante de um programa de auditório.
Alcala foi responsabilizado pela morte de uma menina de 12 anos, mas por falta de provas foi liberado. Com isso, se iniciou uma investigação mais aprofundada e o desenrolar de uma extensa ficha criminal: 1968 ele comete seu primeiro crime, contra uma garota de oito anos; em 1971 a próxima vítima é uma jovem de 23 anos. Alcala foi preso e liberado por falta de depoimento de testemunhas, e em 1977 volta a cadeia pela agressão contra uma menina de 13 anos. Na sua segunda prisão e libertação, assassinou a jovem Ellen Jane Hover, de 23 anos.
Após participar do programa, cometeu mais quatro homicídios contra mulheres. Ele recebeu a pena final apenas em 2010, com prisão perpétua, que cumpre até hoje.
Misoginia e serial killers
Aqui é onde o filme realmente fica sério: ele consegue abordar a misoginia nas relações da protagonista e de outras mulheres que a rodeiam, a facilidade da qual um homem pode sair impune de um crime (Alcala comete o primeiro crime em 1968 e sua condenação só sai em 2010) na sociedade machista e patriarcal, e uma dinâmica de gênero que pode deixar o público masculino (vide, os que também praticam atos de misoginia e machismo na sociedade atual) mais desconfortável na sala de cinema. Isso se eles entenderam a proposta, é claro, algo que às vezes o filme explica até de forma ‘excessiva’. Até porque, crimes desse tipo, só são vividos, sentidos e compreendidos por mulheres.
Para Jane Schoettle, do site ‘Tiff’, a estreia de Anna Kendrick na direção faz um exame nas dinâmicas de gênero da época (que não mudaram tanto assim desde os anos 1970), e, com a atuação de Daniel Zovatto, vemos a arrogância de um homem que trabalha em uma sociedade que não está tão disposta e pegá-lo.
“Em vez de se deter nos detalhes macabros que frequentemente preocupam contos de crimes reais, Kendrick usa o caso para fazer uma declaração sobre a maneira como as mulheres são forçadas a navegar em seus encontros com homens. ‘A Garota da Vez’ também abriga uma verdade sombria: quando você é confrontada pela raiva dos homens, a única maneira de sair viva é jogando o jogo”, argumenta.
Já para Bruno Carmelo, do portal ‘Meio Amargo’, a diretora oferece um contraponto interessante se comparado com os últimos lançamentos de True Crime: enquanto há diversos lançamentos contando histórias de serial killers para mostrar esses homens como sedutores e inevitáveis, Kendrick traz uma perspectiva voltada para a violência de gênero.
“Em primeiro lugar, a cineasta multiplica o protagonismo. Ela ocupa um dos papéis centrais, no entanto, divide o holofote com outras mulheres […]. O roteiro também se posiciona junto a algumas vítimas, tentando compreender o que teria aproximado essas mulheres do criminoso”.
Ainda conforme Carmelo, o longa evita o caricato vilão x heroína, e traz a tona a violência contra mulheres em diversos setores: Cheryl sofre com a misoginia de produtores durante testes de eleco, o constante assédio de um vizinho, e as maquiadoras do programa precisam lidar com o machismo do próprio chefe. A protagonista só pode contar com outras mulheres – não tão diferente da realidade –, como as maquiadoras e cabeleireira do programa e uma garçonete de bar.
“Enquanto os policiais ignoram acusações contra Alcala, as mulheres podem contar apenas umas com as outras”.
Matar por matar
Outro ponto de destaque é a representação de Alcala. Ela também ocorre longe do que anda sendo apresentado, sendo que ele não é filho de um lar problemático, não sofreu bullying na escola, e nem um tipo de abuso ao longo da vida. Atualmente, os assassinos de gênero são retratados como ‘coitados’, quase como se os produtores e diretores quisessem justificar as atrocidades que esses homens fazem contra mulheres, simplesmente por serem mulheres.
“A prioridade reside na defesa das mulheres, e na absurda passividade das autoridades conforme o homem atacava suas vítimas impunemente. O machismo estrutural constitui o verdadeiro tema do projeto”, finaliza.
Thiago Romariz, do ‘Chippou’, enfatiza que os momentos de agressão apresentados no filme vão muito além do jorrar de sangue de um assassinato. “A decepção com a qual Cheryl lida com as consequências de seu brilhante texto na cena do ‘The Dating Show’, soa tão amedrontador e decepcionante quanto a violência em si. Independente da situação, a sensação de prisão e impotência é o maior impacto do filme, que tem, para além de Alcala, a própria sociedade como mantenedora de práticas feitas para oprimir mulheres”, demonstra.
“Não há monólogo, não há lições de moral – isso porque não é necessário. O pavor e a opressão estão refletidos nos olhares de cada uma delas, e não só das vítimas, mas também das mulheres ao redor delas, quase todas em busca de uma luz num mundo que só as vê pelo que há no exterior”.
Por Carolina Rampi
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