Nos últimos meses, Mato Grosso do Sul fomenta nas mídias e redes sociais a ideia de que tem tido os melhores índices de crescimento econômico, desde 1977. Os noticiários, os posts e as propagandas governamentais do estado, municípios e entidades públicas exibem pessoas felizes e uma movimentação comprometida com a otimização do planejamento urbano, melhoria econômica e ascensão social. Para quem encontra representatividade nos discursos de progresso manipulados pelas telas, a sensação que dá é que nunca se viveu um momento tão agradável e seguro para conviver em família, consumir, ganhar e investir dinheiro. Para aqueles que vivenciam diariamente a jornada de trabalho de 8 horas, a escala 6 por 1 e o extraturno em busca de renda extra para manter as contas equilibradas, e mesmo para aqueles que logram para estudar objetivando ascender de classe, a sensação é outra. Parecem estar em uma vida dupla: a real, experienciada no dia a dia, e a inatingível, manipulada pelos discursos de um falso progresso explicitado nas telas, que diante do sofrimento cotidiano gera culpa.
No entremeio desses dois mundos se presentificam uma das maiores ondas de problemas de saúde mental já registradas pelo Ministério da Previdência Social nas últimas décadas. Só em 2024 foram 8.540 pedidos de afastamento do trabalho no estado. Chama a atenção que entre as patologias principais foram constatados 370 casos de stress, 605 de dependência química ou alcoólica, 861 de transtorno bipolar, 1.556 de depressão recorrente e 2.516 de ansiedade. Aliado a esse fenômeno paira no cotidiano uma espécie de descrença social nos movimentos políticos, a falta de fé nas instituições públicas e uma preocupação alarmante que vem das escolas: a inércia das novas gerações para reagirem às demandas da vida real. Não obstante, a indissociação consciente desses dois mundos atenuou também em Mato Grosso do Sul a proliferação da violência doméstica e de gênero, do assédio, do racismo, da xenofobia, da homofobia e do preconceito, como temos observado nos jornais. Soma-se a esses sintomas o surgimento de novos discursos hegemônicos de família, Deus, trabalho e pátria como uma tentativa desesperada de manter a sujeição de grupos sociais para que os discursos da classe dominante continuem alimentando o poder sobre os que necessitam estar de pé, de madrugada, 6 dias por semana para buscarem meios de sobrevivência e manterem a arrecadação tributária e a organização estadual na ativa.
Pode parecer um pouco estranho, mas todas essas questões dão origem a problemas de linguagem. A ausência de uma consciência coletiva quanto a linearidade existente entre o mundo real e o imaginário e a falta de lucidez para (dis)associá-los faz com que as palavras e as coisas se descolem de seus significados, percepções e emoções fazendo com que a comunidade sul-mato-grossense não comungue de uma linguagem comum. Nesse sentido, as trocas verbais e não-verbais ocorridas em sociedade não se historicizam, ou seja, não criam memórias psíquicas e culturais. Sem a tomada da linguagem como mecanismo de regulação da realidade, as pessoas acabam perdendo a dimensão do tempo e do real e passam a viver à mercê de experiências do presente e do imaginário. Sem lucidez para digerir significados, percepções e emoções os cidadãos acometidos por este sintoma se tornam robôs e marionetes nas mãos daqueles que sabem manipular e produzir discursos imaginários e experiências do presente. Transformadas em robôs e marionetes as pessoas parecem não conseguirem mais conviver, pensar, agir e escrever suas histórias. Semelhantemente, passam a não medir mais as consequências de suas ações e escolhas perante o convívio coletivo e, por isso, agem de forma preconceituosa, violenta, racista, xenofóbica e narcisista se apossando de discursos de ódio, sem sequer se darem conta de que os (re)produzem em louvor de uma felicidade imaginária. Se tornam meras executoras e consumidoras do imaginário e viciadas no prazer momentâneo dos eventos presentes. Pelo excesso de imaginário e felicidade utópica, nossa gente acaba desenvolvendo vícios, depressão, ansiedade e tantos outros transtornos de saúde mental como fuga para existir no vazio que a vida sem historicidade produz.
Banido de experienciar o direito ao tempo, que a escala 6 por 1 e a jornada diária de trabalho e hora extra tira da gente sul-mato-grossense, o povo acaba sendo interditado a conviver em família e em sociedade para gerir significados, percepções, emoções e historicizar-se para regular as distâncias entre o mundo real e o imaginário. Sem esse direito ao tempo, essa mesma gente se torna incapaz de apropriar-se da linguagem como tecnologia existencial e, portanto, não consegue se situar como cidadãos e como proprietários do seu próprio ir e vir. Diante desse cenário, nosso povo se martiriza, se sente só, impotente, abandonado e só se adoece mais. As propagandas progressistas dos governos podem até maquiar o mundo real adoecido, mas criam, ao mesmo tempo, um risco à democracia e à própria governabilidade, pois uma população sem autoconsciência e adoecida se torna perigosa. Em uma sociedade adoecida não há governo, mas desgoverno. Sendo assim, sem uma política que considere seus mundos reais, nossa gente, já doente, cedo ou tarde pode se enfurecer e provocar um movimento destrutivo do mundo imaginário. A essa altura do campeonato, já não haverá mais propaganda que vença e disfarce a realidade.
As reflexões apresentadas neste texto são temas de estudo da Linguística Aplicada, um campo inter/multi/transdisciplinar dos Estudos da Linguagem que busca intervir em dilemas sociais e produzir novos sentidos e significados para a existência e, com isso, permitir a construção de projetos éticos, ecológicos e sustentáveis de futuro para aqueles que são marginalizados e excluídos do direito à cidadania e à vida. Essa é uma área que carece de profissionais e estudiosos em Mato Grosso do Sul, um estado jovem feito de imigrantes e povos originários que precisa urgentemente de conhecimentos sobre linguagem que permita à sua gente dialogar e construir significados, percepções, emoções e historicizar-se na realidade. Fica aqui o nosso convite para que todos conheçam mais de perto a Linguística Aplicada, uma ciência humana viva acessível e capaz de transformar e ressignificar mundos.
Lucas Araujo Chagas é Doutor em Estudos Linguísticos, Linguista Aplicado e professor da UEMS. E-mail: [email protected]
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.