É anacrônico falar em reforma agrária?

Foto: divulgação
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O que se denomina reforma agrária, grosso modo, são ações e programas implementados pelo Estado/Governos que visam democratizar o acesso à terra para famílias que querem nela trabalhar, viver e permanecer. Assim, reforma agrária é todo ato que tende a desconcentrar a propriedade da terra quando esta cria obstáculos ao desenvolvimento social fundamentado nos interesses coletivos firmados pela sociedade. Destaca-se que a reforma agrária não pode ser limitada exclusivamente à concepção simplista de distribuição de terras, mas sim, deve ser acompanhada de um conjunto de oportunidades sociais, articulada ao desenvolvimento econômico das famílias e dos territórios em que estão inseridas, da justiça e igualdade social, da produção de alimentos e do combate à pobreza.

Na segunda metade do século XX, diante dos numerosos conflitos e disputas no campo, a reforma agrária foi pauta de intensos debates entre partidos e entidades civis, políticas e religiosas, de diversos espectros ideológicos. Ao adentrar o século XXI, ganhou outro “status”, pois passou a ser prevista na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nos artigos 184 a 191, do título VII, que trata “da ordem econômica e financeira”, do capítulo III intitulado “a política agrícola e fundiária e da reforma agrária”. A Constituição de 1988, liberal e protetora da propriedade privada, é conservadora ao abordar o tema reforma agrária, pois define apenas o imóvel que não esteja cumprindo sua função social passível de desapropriação para fins de reforma agrária. Acrescenta ainda que não é possível desapropriar a pequena e a média propriedade, tampouco a propriedade produtiva (que deve ter tratamento especial).

A Constituição garante que as grandes propriedades improdutivas (que violam a função social da terra), quando desapropriadas para fins de reforma agrária, devem ser indenizadas de forma prévia e justa em dinheiro (benfeitorias) e Títulos da Dívida Agrária (TDA). Cai por terra a desinformação que toda propriedade pode ser desapropriada e que os ex-proprietários perdem tudo. Pelo contrário, os ex-proprietários são indenizados, e muito bem indenizados. O Estado brasileiro paga por cada centímetro de terra adquirida para fins de reforma agrária.

Para se tornar dispositivo constitucional, diversos e distintos grupos e movimentos sociais denunciaram propriedades que não cumpriam sua função social e tensionaram o Estado para que efetivasse políticas de reforma agrária. Infelizmente, a história registra milhares de pessoas que tombaram no caminho e não puderam viver a experiência de ter o acesso à terra para viver e trabalhar. A reforma agrária no Brasil não foi dada, mas sim conquistada.

O Brasil mantém histórica concentração de terras, aliás, o país foi fundado sob as bases latifundistas. A desigualdade na distribuição de terras é escancarada quando os dados mostram que 1% dos estabelecimentos controlam 47,6% de terras no país (estabelecimentos de 1.000 a mais de 2.500 hectares de terra). Somando as propriedades de 500 a 1.000 hectares, gera-se o montante de 58,4% de terras em posse de apenas 2,1% dos estabelecimentos rurais (IBGE, 2020). Embora a criação de assentamentos rurais tenha avançado desde a década de 1980, os índices de concentração fundiária permanecem inalterados. É a partir desse cenário que reforma agrária faz sentido na história inacabada do Brasil, de um passado que atravessa o presente.

Em um país embriagado pela concentração de terras e desigualdades, será que não existem demandantes por políticas públicas de reforma agrária? Chama-se a atenção para o estado de Mato Grosso do Sul (MS), classificado como quinto estado com maior concentração de terras do Brasil (Relatório NERA/Dataluta, 2016), que criou o seu último assentamento no ano de 2013. Ou seja, há 12 anos a reforma agrária está estagnada no estado. No MS existem 204 projetos de assentamentos (representando apenas 2% da área total ocupada do estado), abrigando aproximadamente 32 mil famílias. Estima-se que, conforme a Superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), no estado há aproximadamente 11.601 famílias, oriundas de 82 acampamentos, em fila, demandando a criação de assentamentos rurais.

Não há um país considerado desenvolvido que não tenha realizado algo semelhante ao que se denomina reforma agrária, vide: Estados Unidos, Japão, França, Inglaterra, Espanha, Alemanha e Coréia do Sul. Esses países estruturaram parte do setor agropecuário em pequenas e médias propriedades de regime familiar. Há uma diversidade de pesquisas no mundo atestando que, quanto mais a estrutura agrária for concentrada, maior os índices de concentração de renda, logo, pobreza e subdesenvolvimento. Reforma agrária é um ato político e, qualquer projeto de transformação social no Brasil deve, sobretudo, garantir o acesso democrático à terra.

Posto isso, respondendo à pergunta do título deste artigo: não. Reforma agrária está prevista na Constituição, existem milhares de famílias que demandam por reforma agrária, o Brasil é um dos países com maior concentração de terras no mundo e existem propriedades improdutivas que não cumprem a função social da terra. Reforma agrária é urgente, necessária e precisa voltar de forma séria para a agenda política do Estado brasileiro.

Fabiano Coelho – Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: [email protected]

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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