‘Ato de Sobrevivência’ levará período da censura ao teatro

Última Vez:Roberto ainda em vida durante ensaios da peça Ato de Sobrevivência - Foto: Arquivo pessoal de Marcelo Piccolli
Última Vez:Roberto ainda em vida durante ensaios da peça Ato de Sobrevivência - Foto: Arquivo pessoal de Marcelo Piccolli

Espetáculo revisita montagem do grupo “Senta que o Leão é Manso”, com resgate a texto censurado e homenagem a Roberto Figueiredo

Em 2024, ao completar 60 anos do golpe militar que instaurou uma das fases mais sombrias da história do Brasil, o país volta seu olhar para a memória e para os ecos deixados por esse período de autoritarismo, censura e violência. Em meio a essa reflexão histórica, o Grupo Teatral Senta que o Leão é Manso em parceria com a Estação Cultural Teatro do Mundo e o Teatral Grupo de Risco, promove quatro apresentações da peça “Ato de Sobrevivência”, retomando um texto que nasceu no calor da repressão e da luta por liberdade.

Escrita e encenada pela primeira vez em 1978, quando o regime ainda impunha silêncio e medo, “Ato de Sobrevivência” é um grito artístico que resistiu à censura e expressou a angústia de uma geração sufocada pela opressão. A peça reúne cinco personagens em um espaço simbólico e indefinido, onde compartilham experiências, dúvidas e dores, dialogando sobre temas que ultrapassam fronteiras, como guerras, fome e alienação. Com linguagem poética e influências da Tropicália e da contracultura brasileira, a obra propõe um mergulho profundo na condição humana sob regimes autoritários, levantando questões universais sobre resistência e liberdade.

“Zé da Lua”: Marcelo Piccolli, atual diretor do grupo teatral Senta que o Leão é Manso interpreta “Zé da Lua”, personagem sensivel mas combativo ao regime autoritário vigente na época – Foto: Arquivo pessoal de Marcelo Piccolli

No dia 21 de junho, o espetáculo será encenado no Teatral Grupo de Risco, localizado na Rua Trindade, 401 – Jardim Paulista. A entrada é gratuita, e mais informações podem ser obtidas pelo Instagram: @teatralgrupoderisco. As apresentações acontecem sempre às 19h30. Já nos dias 27, 28 e 29 de junho, as apresentações acontecem na Estação Cultural Teatro do Mundo, situada na Rua Barão de Melgaço, 177 – Centro. Os ingressos estão disponíveis por R$ 20,00 (inteira) e podem ser adquiridos pelo WhatsApp: (67) 99696-9774 (Fernando).

O espetáculo é uma realização do Setor de Cultura e Arte da UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), em parceria com o Grupo Teatral Senta que o Leão é Manso, vinculado à própria universidade. A direção é de Roberto Figueiredo, que conduz um elenco formado por Ana Falcão, Arthur Gazula, Marcelo Piccolli, Mateus Petuco e Tayná Borges.

A trilha sonora e a sonoplastia são assinadas por Ana Gabriela, Lucas Nogueira e Thalles Brisola, responsáveis por criar a atmosfera sonora da peça. A iluminação, que complementa a experiência cênica, é de Gabriel Bonessoni.A peça tem classificação indicativa de 14 anos e pode ser acompanhada nas redes sociais pelo perfil oficial do grupo no Instagram @senta_leao.

Foto:Arquivo pessoal de Marcelo Piccolli

Como tudo começou

Para a reportagem do Jornal O Estado, o atual diretor do Grupo Teatral Senta que o Leão é Manso explicou como se deu o processo de seleção e remontagem da peça Ato de Sobrevivência, destacando seu forte teor político e histórico. Segundo ele, o texto foi originalmente escrito entre 1977 e 1978, em Três Lagoas, por um grupo de acadêmicos do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, que mantinha uma companhia teatral. Entre os autores estava o professor Roberto Figueiredo, que viria a se tornar diretor do grupo em Campo Grande, além de Magno Martins, que assinou oficialmente a autoria da obra.

Na época, o país ainda vivia sob o AI-5 (Ato Institucional nº 5), e a repressão do regime militar se intensificava. O espetáculo precisou passar pelo crivo do SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão de controle da ditadura. Como resultado, partes da peça foram censuradas e não puderam ser apresentadas na estreia, que aconteceu em 1978. Esse histórico de censura marcou profundamente a obra, que se consolidou como um símbolo de resistência artística e crítica ao autoritarismo.

A ideia de remontar Ato de Sobrevivência em 2024 surgiu como uma forma de relembrar os 60 anos do golpe militar de 1964. Segundo o diretor, o grupo considerou essa uma data simbólica e necessária para revisitar a obra, destacando sua atualidade e seu caráter atemporal. A peça foi escolhida tanto por seu valor histórico quanto por sua capacidade de dialogar com questões contemporâneas, oferecendo ao público uma reflexão crítica sobre a repressão, a censura e os perigos dos regimes autoritários. A nova montagem estreou em novembro de 2024, reafirmando o teatro como espaço de memória e resistência.

“A peça vai além do contexto brasileiro, abordando temas como o conflito entre Palestina e Israel, ascensão da extrema direita, regimes autoritários, violência, intolerância e conservadorismo exacerbado. Surpreendentemente, o texto mantém uma atualidade impressionante, apesar de ter sido escrito em 1978, sem nenhuma alteração.O mais interessante é que a peça será encenada integralmente, incluindo a parte que havia sido censurada na época. Isso demonstra como o conteúdo permanece pertinente e impactante até hoje”, explica o diretor que também faz parte do elenco.

Foto: Arquivo pessoal de Marcelo Piccolli

Produção

Atualmente, cerca de 11 pessoas estão diretamente envolvidas na produção da peça Ato de Sobrevivência,

incluindo elenco, direção, músicos, equipe técnica e produção. O elenco é formado por cinco atores – Marcelo Piccolli, Ana Falcão, Mateus Petuco, Arthur Gazula e Tayná Borges.

A direção, originalmente assinada por Roberto Figueiredo, passou a ser conduzida por Marcelo Piccolli após o falecimento do professor em dezembro de 2024, fato que também conferiu um novo peso simbólico à reapresentação da obra. Além da equipe principal, mais de 30 pessoas colaboraram de forma indireta com a montagem, desde a confecção de cenários até o apoio logístico, totalizando um amplo esforço coletivo dentro do Grupo Teatral Senta que o Leão é Manso da UCDB.

“O meu personagem é o Zé da Lua, um poeta ‘maldito’, angustiado e enraivecido diante da censura e repressão. Ele denuncia essas questões por meio da poesia, da linguagem simbólica e da arte. Foi muito interessante construir esse personagem, que está profundamente inserido na estética da Tropicália e do movimento hippie brasileiro dos anos 60 e 70.Zé da Lua entende a realidade, mas tenta escapar dela — ou transformá-la — negando a violência, a morte e insistindo na sobrevivência. Foi um desafio interpretá-lo, porque ele é, ao mesmo tempo, sensível e combativo. Um personagem que tenta o tempo todo se comunicar e alertar sobre o que está acontecendo. A construção foi complexa, mas acredito que conseguimos dar vida a ele”, destaca.

Reflexão e homenagem

A peça busca provocar no público uma reflexão profunda sobre temas como censura, repressão e autoritarismo, utilizando a poesia como um ato de sobrevivência. Ao abordar realidades vividas e observáveis, espera-se que a plateia reaja com indignação e reflexão, reconhecendo que, apesar de ser uma obra escrita em 1978, ela revela questões ainda atuais. Para fomentar esse diálogo, todas as sessões serão seguidas de bate-papo com o público, visando diminuir a alienação e promover uma troca de angústias por meio da arte engajada.

Marcelo finaliza afirmando que a principal expectativa é que o público saia do espetáculo Ato de Sobrevivência tocado e em profunda reflexão sobre temas como intolerância, violência, alienação, radicalização, fundamentalismo e a perda de liberdade, questões centrais tanto na época da ditadura quanto nos dias de hoje. Ele destaca que o texto original, escrito em 1978, não foi adaptado, mas permanece extremamente atual em seu conteúdo e linguagem. A montagem conta com trilha sonora autoral, composta especialmente para a peça, refletindo as influências culturais dos anos 1960 e 1970, como a Tropicália e o movimento hippie brasileiro.

“Esta peça tem um significado muito especial para o grupo: foi uma das primeiras em que o Roberto Figueiredo atuou e também a última que ele dirigiu. Essa será a primeira vez que o grupo apresenta um espetáculo sem a presença dele, agora sob minha direção. A família do Beto tem apoiado muito essa iniciativa e estará presente na apresentação do dia 21. A peça também conta com parcerias importantes, como o Teatral Grupo de Risco, que cedeu gentilmente o espaço, e a Estação Cultural Teatro do Mundo, dois locais que o Beto amava e frequentava com carinho. Então, poder levar essa montagem a esses palcos é também uma forma de homenageá-lo”, finaliza Marcelo.

 

 Por Amanda Ferreira

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