Lendo o jornal O Estado Mato Grosso do Sul, edição do dia 3/10/2023, deparo-me com algumas informações: as Santas Casas e Filantrópicos de Mato Grosso do Sul “se posicionam contra a legalização do aborto”; a votação foi unânime e religiosos e médicos são favoráveis a não implantação dos procedimentos cirúrgico ou ambulatorial referentes ao aborto”.
A decisão vem após o voto da ministra do STF, agora aposentada, Rosa Weber, que nos derradeiros dias de sua judicatura, votou pela descriminalização do aborto até a décima-segunda semana.
Toda essa situação traz em si contradições gritantes e fatos que podem causar perplexidade ao cidadão brasileiro. Faço algumas observações.
Quando a ministra do STF pronuncia um voto descriminalizando o aborto (julgamento ainda não concluído, pois aguarda os demais votos dos senhores ministros) ela passa um recibo nas reclamações do Congresso, vez que, mais uma vez, é evidente que a Suprema Corte se imiscui em atividade que não lhe devia competir.
O Brasil já tem uma legislação sobre o aborto, consagrada e aceita culturalmente pelo povo brasileiro. Qualquer mudança disso deveria vir pela outorga popular por meio de seus representantes eleitos, não se tratando, portanto, de intromissão do Judiciário para suprir qualquer lacuna legislativa, ou seja, trata-se, escancaradamente, de ativismo judicial.
Essa atitude, sobre um tema tão melindroso, causa evidente desgaste para o STF, olhado com suspeitas por grande parte do povo brasileiro.
O Código Civil, em seu artigo 2º, protege os nascituros, dizendo que “a lei põe a salvo, desde a concepção”. A prevalecer o prazo de doze semanas onde é permitido o aborto (segundo as pretensões do PSOL e o voto da ministra), o nascituro ainda teria direito à proteção ou isso só se daria a partir da décima-segunda semana da concepção?
O nascituro que não tem sequer o direito à vida, até a décima-segunda semana, deveria ter um curador em caso de falecimento do pai antes disso (artigo 1.779 do CC)? O curador poderia intentar uma ação para proibir a mãe de efetivar o aborto? Afinal, o supremo direito de um nascituro é a vida, é poder nascer.
A solução mais democrática possível seria a realização de um plebiscito. Isso já começa a se tornar realidade com o projeto de decreto legislativo (PDL) nº 343/2023, apresentado por diversos senadores no dia 02/10/2023.
A pergunta a ser formulada no PDL é a seguinte: “Você é a favor da legalização do crime de aborto?” A resposta deverá ser “sim” ou “não”.
Portanto, caso prospere a iniciativa do Senado, teremos ampla discussão sobre o tema “descriminalização do aborto”.
Não me nego a opinar desde já sobre o assunto. Klara Castanho, conhecida atriz, foi vítima de estupro e, aos 21 anos, optou por dar o bebê à adoção. Uma chuva de críticas se abateu sobre a moça. Afinal, era melhor abortar? Ou quem sabe educar um bebê fruto de um estupro? É moralmente aceitável dar a criança para adoção? São questões que a sociedade brasileira precisa responder, o que não será feito por decisão do Judiciário, onde Ministros não detém um mandato, uma procuração, outorgada pelos cidadãos do país. O
s argumentos mais usados pelos defensores do aborto são os de que a mulher é dona do seu próprio corpo; é uma questão de saúde pública, evitando-se abortos clandestinos; desigualdades sociais que impedem às mulheres pobres de fazer essa opção; o Estado brasileiro é laico, e, portanto, não pode se submeter às pressões de religiosos. Simplificando, o que é perigoso em casos como esse, pretendo apenas permitir que o leitor inicie um processo de reflexão.
Quanto à mulher ser dona de seu próprio corpo é uma meia-verdade. Ela é dona para se decidir a ter relações sexuais, seja com quem for, no casamento ou fora dele. No entanto, a cada relação sexual consentida, homens e mulheres assumem as responsabilidades pelas consequências desse ato.
Afirma o professor Gabriel Ferreira: “O que ocorre, no entanto, é que desde a concepção o embrião possui carga genética irrepetível e diferente daquela da mãe e, mesmo até o terceiro mês, vários de seus órgãos – ou proto-órgãos – já estão funcionando”. (1)
Portanto, quando se trata de aborto, não está mais em jogo apenas o corpo de uma mulher. Há outro corpo nela, um embrião, um feto, e esse outro corpo tem um pai, avós, irmãos, tios, enfim, esse outro corpo tem uma família. A pergunta que se impõe: os pais e demais parentes não têm direito algum em receber um bebê que também é seu?
O direito à vida é cláusula pétrea esculpida em nossa Constituição (artigo 5º).
Quanto ao tratar-se de uma questão de saúde pública, evitando-se abortos clandestinos, outra questão se impõe: é moral permitir que alguém mate por interesse próprio (sem as excludentes penais) ou essa pessoa deve ser compelida a arcar com suas responsabilidades?
Fazendo um paralelo: seria recomendável liberar as drogas, as mais pesadas, porque o usuário adicto seria dono do seu próprio corpo? Ainda que o dependente não possa ser obrigado a um tratamento, também é verdade que seu vício é uma questão de saúde pública.
Finalmente, o Estado é laico. Usa-se desse argumento como se todos os brasileiros que são contra a descriminalização o fizessem por motivos religiosos. Ora, isso é uma falácia. Não há a necessidade de se sustentar motivos religiosos para ser contra o aborto.
Culturalmente, o povo brasileiro ainda repudia a descriminalização do aborto. Ainda que se diga que o Brasil tem cultura cristã, isso não é o mesmo que dizer que o país é cristão. Cultura é uma coisa, convicção religiosa é outra. O povo brasileiro repudia o aborto também por uma questão cultural e isso exclui motivações religiosas. No atual momento, segundo pesquisas, 43% dos brasileiros são contra a descriminalização do aborto e 39% são favoráveis (CNN Brasil); Em 2022, 41% eram contrários e 32% favoráveis (Datafolha). Por isso, nada mais justo e desejável do que a realização de um plebiscito que exclua decisões do STF e direcione as votações no Congresso.
Por Emerson Ottoni Prado, advogado e escritor.