Délio e Delinha: O casal de onças de Mato Grosso

Foto: Divulgação
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Por Idara Duncan* 

“Meu casal de onças de Mato Grosso”, era assim que, em meados do século passado, o diretor da Rádio Bandeirantes de São Paulo anunciava a participação de Délio e Delinha nos programas musicais da emissora. E foi assim que ficaram conhecidos no Brasil inteiro.

Naturais de Maracaju, no atual Mato Grosso do Sul, construíram uma das mais longas e representativas carreiras musicais do Estado. Délio faleceu em 2010; Delinha continuou encantando novas gerações até que partiu no último dia 16, aos 85 anos de idade. Merecidamente chamada de “Dama do Rasqueado”, deixa um legado precioso para a cultura regional e que certamente continuará vivo na voz do filho João Paulo e de outros artistas.

Em 2008, Idara Duncan entrevistou a dupla para o livro “A Música de Mato Grosso Sul”, escrito em parceria com a professora Maria da Glória Sá Rosa. A seguir, texto editado do original publicado.

Legítimos representantes – Délio e Delinha integram a história da arte musical sul-mato-grossense. Incentivaram a carreira de vários músicos numa época em que gravar era um sonho impossível. Suas vidas traduzem a crônica dos tempos, a saga deste estado. Legítimos representantes da nossa música sertaneja no contexto da arte popular brasileira, transportam-nos à época da primazia das rádios nos meios de comunicação.

Suas músicas embalaram os sonhos, as alegrias, os anseios, as dores-de-cotovelo de várias gerações de brasileiros. Os sul-mato-grossenses de Maracaju, José Pompeu e Delanira Gonçalves Pompeu, primos, após enfrentarem inúmeras dificuldades financeiras na infância e na juventude, casaram-se unidos pelo sangue e pela música e iniciaram a carreira profissional em Campo Grande, nos anos 1950, cantando em festas, programas de auditório, parques e circos.

Seguiram para São Paulo e com o apoio de Zacarias Mourão assinaram contrato com a Rádio Bandeirantes. O diretor da emissora, capitão Balduíno, que trocou o nome da dupla para Délio e Delinha, ao apresentá-los no programa “Brasil Caboclo”, chamava-os “meu casal de onças de Mato Grosso”, apelido pelo qual ficaram conhecidos no país.

O primeiro disco em 78 rpm, da gravadora Califórnia, com as músicas Malvada e Cidades Irmãs, foi sucesso nacional, seguido do LP “Prenda Querida”, ambos de Délio, o que consolidou o trabalho da dupla. Formaram o trio Délio, Delinha e Guarati e depois gravaram com outros acordeonistas como Zé Corrêa e Caçulinha. As saudades da terra natal foram determinantes para que retornassem a Campo Grande, após cinco anos, porém, daqui continuaram a enviar músicas para a gravadora Califórnia, prosseguindo uma carreira fonográfica consagrada.

A dissolução do casamento provocou o rompimento da dupla, mas voltaram a gravar em 1981, alcançando grande sucesso com a música “O Sol e a Lua”. Voltaram a atuar juntos em 1993. Délio casou-se com Olanda e Delinha com Jairo Barbosa e os dois casais mantêm harmoniosa convivência profissional. Délio enfrentou sérios problemas de saúde; no entanto, com muita garra e determinação, conseguiu vencer um câncer no pulmão.

A dupla voltou a cantar acompanhada do conjunto Délio, Delinha e Grupo, empresariada pelo filho João Paulo, formado em Comunicação Social, também compositor e cantor como os pais. Projetaram o nome do estado de Mato Grosso do Sul com músicas que receberam grande influência dos ritmos da fronteira, principalmente do rasqueado. As melodias estão perpetuadas no imaginário popular, através da sensibilidade das composições e interpretações de dois artistas, que tangem as cordas do coração do povo.

Délio: a luta, o sucesso e o retorno – Vim para Campo Grande aos dois anos de idade, há 81 anos atrás. Desde criança eu já gostava de música, tocava cavaquinho com meu irmão caçula. Cantávamos em desafio. Aqui cursei apenas o primário no colégio Felizberto Carvalho, depois o mundo foi meu professor. O tempo foi passando e eu fui para o Exército. Quando saí, fui cortar lenha para estrada de ferro e fazer cerca de arame-farpado.

Fiz tudo quanto é serviço bruto. Resolvi ir para São Paulo e lá cursei eletricidade, fiz a parte elétrica de vários prédios paulistas. Estava indo muito bem, mas a saudade apertou, e como nós sul-mato- -grossenses somos muito bairristas, resolvi voltar para Campo Grande. Aqui chegando fui à casa de meu irmão. Tia Chiruca, irmã de meu pai, que é mãe de Delinha, foi me visitar com a filha, que gostava de música e convidou-me a ir a sua casa para cantarmos juntos.

Conversamos, cantamos e dentro de pouco tempo acabamos namorando, até chegarmos ao casamento. Fomos morar em São Paulo. Lutando com muito sacrifício, conseguimos construir nossa casa, compramos carro, tínhamos uma vida até muito boa. Saímos daqui para São Paulo com o nome de Nhô Tuca e Nhá Delinha. Lá acharam que nossa música não tinha nada de caipira, por isso o nome não combinava, então mudamos para Duo Pintassilgo.

Cinco dias após chegarmos a São Paulo, fomos apresentados pelo Zacarias Mourão ao diretor artístico da Rádio Bandeirantes, capitão Balduíno. Gostaram do nosso trabalho e fomos contratados. Balduíno resolveu mudar o nome da dupla para Délio e Delinha.

Na hora de nos apresentar no programa, ele esquecia o nome e dizia: “agora nós vamos chamar o meu casal de onças de Mato Grosso”. Não gostamos muito, porém o apelido pegou. Nós entrávamos, pegávamos o microfone, cantávamos, dávamos um show e o povo vibrava. Ao voltarmos para Mato Grosso do Sul após cinco anos, já havíamos gravado um 78 rotações com duas músicas minhas, “Malvada” e “Cidades Irmãs”, que foi sucesso nacional.

Ao chegarmos, já começamos a cantar na Rádio Cultura e a fazer apresentações em toda parte. Para nossa surpresa, descobrimos que já éramos bastante conhecidos por aqui. Ficamos morando em Campo Grande, mas gravávamos em São Paulo, na Gravadora Califórnia, do Mário Vieira. Nossos discos faziam grande sucesso no país.

A música sul-mato-grossense não é a caipira de Minas Gerais e São Paulo, é a sertaneja, mais sofisticada, com influência tupi-guarani, com sons e linguagem castelhana do Paraguai. Nosso ritmo preferido para compor, que traduz melhor nossos sentimentos, é o rasqueado, além do chamamé e da guarânia.

Eu me considero uma pessoa realizada. Fico feliz em ver que tantos artistas jovens, como o Grupo Tradição, o Grupo Chama Campeira, a dupla Aurélio e Laura e outros, valorizam e gravam nossas músicas. Não consegui ficar rico, nem coisa alguma, porque não sou munheca mesmo, mas tenho a minha casa, trabalho, criamos o Délio, Delinha e Grupo e nos apresentamos por aí a fora. Sempre ganhei para o meu sustento e está bom demais.

Delinha: o coral, o casamento, a música – A música me acompanha pela vida a fora desde que eu era bem pequena. Aos cinco anos, já cantava. Apesar de uma infância cheia de dificuldades, onde tudo era conseguido com muito sacrifício, tive a sorte de estudar no Colégio Perpétuo Socorro, no bairro Amambaí.

Em troca do meu trabalho na escola, pude ainda cantar no coral, dos 10 aos 14 anos. Quando fui para o Colégio Estadual Campo- -Grandense, fui aluna da professora Glorinha [Maria da Glória Sá Rosa]. Prossegui cantando na Igreja Perpétuo Socorro, até me casar.

Quando o primo Zezinho, o Délio, voltou de São Paulo, nos encontramos, começamos a cantar de brincadeira e nossa afinidade artística foi se revelando. Eu, ele e a Evanir, criamos um trio que se chamava Duas Damas e um Valete, logo começamos a namorar, noivamos, a Evanir saiu e trocamos para Delinha e Zezinho.

Na mesma época, surgiram outras duplas como Rodrigo e Rodriguinho, que eram casados com Beth e Betinha, todos cantores e amigos. Realizávamos apresentações em cine-teatros, shows, circos e nos programas de auditório da PRI-7, dirigidos pelo Sabino Preza.

A rádio era a grande alegria do povo naquela época. Como Délio aprendeu o ofício de tintureiro, montamos uma tinturaria em casa, onde eu lavava e passava as peças, pois precisávamos nos virar para sobreviver. Casamos em 22 de fevereiro de 1958 e alguns dias depois decidimos tentar a vida em São Paulo, onde fomos muito bem recebidos pelos amigos.

Apresentávamos nossas composições no programa “Brasil Caboclo”, da Rádio Bandeirantes. Fazíamos muito sucesso, porém sem qualquer remuneração. Morávamos no bairro do Bexiga e sobrevivíamos com a renda dos shows que fazíamos, o que deu para construirmos com nossas economias uma casa em Pirituba. Eu amassava o barro e o Délio era o pedreiro. Permanecemos em São Paulo por alguns anos.

Apesar de já termos gravado um disco na gravadora Califórnia, a saudade apertou e voltamos para a terra natal. Dias após a chegada, nos apresentamos no circo do Nhô Pai e Nhô Filho, ali no terreno onde está o Mercadão e não paramos mais de fazer sucesso. Depois de nos separarmos maritalmente, deixamos de nos apresentar em público por 20 anos. Só voltamos a atuar em 1993, participando de diversos shows e de alguns CDs.

Criamos em 1998 o Délio, Delinha e Grupo, com nosso filho João Paulo, cantor e compositor que nos empresaria, Nilsinho no acordeón, Ado Francis no violão, Cláudio na bateria; e Jairo Barbosa, meu atual marido, no acordeón. Lançamos, em 2008, o CD e DVD “50 Anos de Carreira”, de Délio e Delinha, que tem feito o maior sucesso. Fazemos shows em Campo Grande e nas cidades do interior do estado, em todos os fins de semana.

Nossa agenda está lotada. A minha última composição foi “Por Onde Andei”. Estou tão animada que até voltei a compor, tenho várias músicas inéditas. O que mais nos emociona é a fidelidade de um povo que nos acompanha com carinho, há mais de cinquenta anos, e o público jovem, que aplaude e canta as nossas canções com o mesmo entusiasmo das outras gerações, pedindo autógrafos. Eu só tenho motivos para agradecer a Deus por esta vida.

*Idara Duncan é formada em Letras com especialização em Língua Portuguesa. Tem longa trajetória de atuação cultural e várias publicações relacionadas à área. É associada emérita do IHGMS.

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