O quanto implacável e ocasional pode ser nossa vida? O quanto conseguimos controlar? Às vezes conseguimos assimilar coisas na dureza de nossos percursos, e claro, o cinema encontrou um jeito de sintetizar as tramas engraçadas e fatídicas da realidade. Os westerns fizeram muito sucesso por sua crueza e por serem histórias que não poupavam ninguém, por mais que houvesse um plano de fundo agradável o grande vilão era sempre o acaso, onde mesmo vemos esse tipo de empecilho? “O Diabo de Cada Dia” 2020 mais novo filme da Netflix reflete muito bem como tudo se transforma num instante.
Alguns farão colocações das mais diversas sobre tal obra, como o seu nível de rispidez ao retratar sadismos de alguns, ou até mesmo como a fé sempre objeto de especulação dos perversos, mas esse filme chega em boa hora para criticá lo e tecer as mais brilhantes afirmações a respeito da psique humana. Esta obra comandada por Antonio Campos, um diretor/roteirista, muito talentoso na hora de prender o espectador e passar um ar de preocupação com aquilo que estamos vendo em tela, e deixar cada parte importante com diálogos bons e estimulantes. Vamos acompanhando algumas histórias, num vai e vem do tempo, que logo fazem sentido mesmo no primeiro ato. O elenco conta com Tom Holland, Bill Skarsgård, Robert Pattinson, Sebastian Stan, Mia Wasikowska e Jason Clarke que dão um show à parte. Esse filme funciona muito pela carga dramática que os atores conseguem transpor muito bem. Toda história se desenrola através do veterano de guerra Willard Russell, que após chegar nos Estados Unidos depois da guerra da Coreia, está em busca de um recomeço, construir uma família. Ele não carrega o mal dentro de si, mas busca um conforto de ter alguém. O que o ator Bill Skarsgård imprime muito bem nos trejeitos e na forma como se apresenta para sua pretendente Charlotte (Haley Bennett), a história aqui é contada por lapsos de tempo contados por um narrador onisciente.
Sem deixar muitos spoilers, esta obra é mais uma daquelas que permite várias conclusões a partir da fase da vida em que assistimos. Neste momento ela arremete como todas relações são passageiras e como as desgraças e as piores atrocidades são tidas como normais por boa parte da sociedade que já se acostumou com o mundo onde buscamos a violência desmedida, seja em filmes, noticiários e nos perdemos num mundo onde só nosso ego inflamado importa. Tom Holland carrega em seu personagem toda essa angústia de ser uma boa pessoa e ter que lidar de forma bruta com as adversidades da vida, por ser a única maneira como ele entende o mundo. Assim como a dupla de serial Killers que prefere seguir na rotina de matar e humilhar suas vítimas para buscar alguma humanidade dentro de si quando só ficam mais distantes disso. A fé e a arma são dois símbolos distantes em significado, mas aqui são os únicos elementos que unem todos os acontecimentos do filme, podem demonstrar como o homem se desvia e como se entrega ao animal dentro de si, deixando de lado os sentimentos e fazendo com que vingança seja a única forma de resolver qualquer empecilho que o acaso trouxer. A narrativa não cansa, por mais que alguns acontecimentos se arrastem mais do que necessário e outros passam rápido demais. A recriação mesmo que superficial dos anos 1960 é muito boa, essa textura que o filme carrega junto com apreensão é algo que vai consumindo o espectador por ser cúmplice de tantos acontecimentos. Somos jogados em uma espécie de roteiro que teve o aval dos irmãos Coen, até o humor macabro está aqui. O diabo de cada dia não é um filme fácil, muito menos simples de digerir mas traz sim outras tantas reflexões sobre nós e a sociedade. Tanto que vale uma ou duas sessões para pegar cada simbologia ou compreender melhor toda essa história.
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(Texto: Filipe Gonçalves)