O PT lançou um livro e uma ofensiva de comunicação que visam rechaçar a associação de casos de corrupção ao partido e ao seu principal líder, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em consonância com as declarações da presidente do partido, Gleisi Hoffmann, segundo quem não houve corrupção sistêmica na Petrobras, o “Memorial da Verdade: Por Que Lula é Inocente e Por Que Tentaram Destruir o Maior Líder do País” tem o objetivo de ser um manual de campanha para a militância.
Em suas 70 páginas, o livro mescla fatos, como a sequência de vitórias judiciais obtidas por Lula e abusos da Operação Lava Jato, com distorções, omissões e inverdades. Afirma, por exemplo, que decisões favoráveis a Lula se deram porque a sua defesa, coordenada pelo casal de advogados Cristiano Zanin e Valeska Martins, provou que eram falsas as denúncias feitas pela Lava Jato e que resultaram em duas condenações, nos casos do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia.
Na verdade, as duas condenações e outras ações foram anuladas em razão de decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) relativas a questões processuais. A primeira, de que a Vara Federal de Curitiba não tinha competência para julgar os casos. A segunda, de que o então juiz Sérgio Moro agiu de forma parcial nas ações relativas a Lula. Com isso, o petista retomou sua elegibilidade e a condição de inocente, aplicável a todo cidadão sem condenação penal definitiva.
O livro assegura ainda não ter havido corrupção sistêmica na Petrobras nem superfaturamento em contratos – contrariando não só a investigação da Lava Jato, mas processos do TCU (Tribunal de Contas da União) e a própria estatal – e traz a falsa informação de que o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot confessou um crime, o de ter forjado uma denúncia contra o partido.
O “Memorial” não se restringe ao “petrolão”, afirmando ainda que “uma recente perícia” na Justiça de Brasília provou que não houve desvio de dinheiro público no “mensalão” – em 2012 o STF condenou dirigentes do partido sob o argumento de que eles lideraram esquema que desviou dinheiro público para compra de apoio político no Congresso.
Lula participou do lançamento do “Memorial”, em agosto.
“O PT está se preparando para que nas próximas campanhas, nos próximos anos, ninguém tenha coragem de achar que vai falar de corrupção e vai inibir o PT. (…) Com esse livro aqui, temos que ter a obrigação de não ter medo de discutir a questão da corrupção”, disse, na ocasião.
Lula lidera as pesquisas de intenção de voto para 2022. Ele ficou 580 dias preso em razão do caso do tríplex. Deixou a prisão em novembro de 2019, um dia após o STF ter mudado seu entendimento e decidir que um condenado só pode ser preso após o trânsito em julgado.
A tese geral defendida no livro é a de que tanto Lula quanto o PT foram vítimas de um conluio entre setores poderosos, Moro, a força-tarefa da Lava Jato e os principais órgãos de comunicação do país. Apesar disso, o memorial lembra que o ponto de inflexão da opinião pública sobre a Lava Jato se dá a partir das revelações da relação alinhada de Moro com os acusadores, o que veio à tona por meio de reportagens do site The Intercept Brasil, “em parceria com outros veículos (Veja, Folha de S. Paulo, UOL, El País, entre outros)”.
O “Memorial” registra também decisões judiciais que analisaram e refutaram o mérito de acusações contra Lula, uma delas a do juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara do Distrito Federal, que em 2019 absolveu Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff e ex-ministros no caso do “quadrilhão do PT” afirmando que a denúncia apresentada por Janot era, na verdade, uma tentativa de criminalização da política.
É nesse ponto que o livro afirma que Janot confessou em seu livro – “Nada Menos que Tudo” – que “só fez aquilo para atender um pedido de Deltan Dallagnol [chefe da força-tarefa] e dos procuradores que haviam acusado Lula sem provas em Curitiba”.
Janot relata no livro ter recebido em 2016 pressão de Dallagnol para que a denúncia da PGR de formação de quadrilha contra o partido fosse feita imediatamente, para dar lastro à acusação de Curitiba contra Lula por lavagem de dinheiro. Ele diz no livro, porém, que rechaçou esse pedido e que apresentou a denúncia um ano depois, “obedecendo tão somente ao andamento natural das investigações”.
Apesar de apontar as cifras pagas a executivos da Petrobras como “escandalosas”, o “Memorial” argumenta que as investigações da Lava Jato é que causaram os maiores prejuízos à estatal e argumenta que, se havia um cartel de grandes empresas com o intuito de dividir os contratos entre si, “por que, então, os ex-diretores recebiam suborno?”.
Como resposta, diz que poderia haver motivos como evitar atrasos nos pagamentos ou na assinatura de contratos, “mas não para superfaturar contratos”. E critica o fato de aqueles pagamentos terem sido carimbados pela Lava Jato como “propina”.
Além de uma série de indícios e delações de executivos da estatal, empresários e políticos, o TCU, que criou uma unidade específica para acompanhar esses casos, calcula ter havido R$ 12,3 bilhões em superfaturamento em contratos da estatal, o que não inclui valores de processos ainda em apuração ou em que a citação dos responsáveis ainda não foi autorizada pelo relator.
Em 2015, e sob pressão, a Petrobras lançou em seu balanço do ano anterior perdas de R$ 6,2 bilhões relacionadas a corrupção. No início deste mês, a estatal divulgou ter concluído as obrigações previstas no acordo com autoridades norte-americanas, com pagamento de US$ 853,2 milhões (R$ 4,64 bilhões), sendo 80% para as autoridades brasileiras.
Em nota enviada à reportagem, a estatal afirmou já ter recebido mais de R$ 6 bilhões em decorrência de acordos de colaboração premiada, leniência e repatriações. Diversas empresas firmaram acordo de leniência, entre elas Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht.
“A Petrobras foi vítima de uma série de ilícitos investigados pela Operação Lava Jato. A companhia, inclusive, já foi reconhecida nessa condição pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Ministério Público Federal”, disse.
O ex-juiz Sérgio Moro disse que a tese do livro lançado pelo PT “não confere com provas colhidas nos processos, incluindo documentos e depoimentos”, ressaltando que “a própria Petrobras reconheceu perdas com pagamentos de subornos”. “Como se não bastasse, há estudos independentes que mostram o superfaturamento de obras como a RENEST [Refinaria Abreu e Lima] e Comperj [Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro], sem falar na disparidade dos valores de aquisição da refinaria de Pasadena e posterior venda”, acrescentou.
Deltan e procuradores da extinta força-tarefa de Curitiba não quiseram se manifestar. A assessoria de imprensa do PT afirmou que Moro desconsiderou as provas de inocência do petista, entre elas a de que 100% do valor do tríplex havia sido cedido pela OAS à Caixa Econômica Federal e que o imóvel havia sido contabilizado na recuperação judicial como ativo da empreiteira.
No caso de Atibaia, o PT diz que os advogados de Lula provaram que o valor atribuído à reforma do sítio foi sacado em favor de um dirigente da empresa. O PT ressalta não terem sido provados atos de ofício de Lula em troca da suposta propina e diz considerar que nas decisões judiciais que anulam sentenças por suspeição, “assim como nas sentenças de absolvição, atesta- -se a inocência do acusado”.
O partido afirma ainda que a referência a formação de um cartel de empresas na Petrobras remonta a período anterior ao do PT, conforme depoimento de executivos da Setal Óleo e Gás. E destaca tese de doutorado da professora Maria Virgínia Mesquita Nasser (USP), “que examinou as delações e depoimentos de 14 dos principais réus e investigados da operação”, não encontrando enquadramento dos pagamentos na modalidade de superfaturamento. “A Lava Jato e a mídia em geral citam os delatores na narrativa da ‘corrupção sistêmica’, mas ignoraram depoimentos como estes, por exemplo, que supostamente teriam o mesmo valor”, diz o PT.
Sobre a afirmação falsa sobre Janot, a assessoria não respondeu diretamente. Disse apenas que a prova de que a denúncia do “quadrilhão do PT” foi forjada está na sentença da Justiça do Distrito Federal que absolveu sumariamente Lula, Dilma e os ministros. A assessoria diz ainda que a perícia que provaria a ausência de dinheiro público no “mensalão”, na visão do PT, consta de laudo “de agravo apresentado pela defesa” de Henrique Pizzolato, ex-diretor do Banco do Brasil, em ação movida pelo banco contra ele.
Veja pontos do livro do PT e o seu contexto
LULA E OS TRIBUNAIS
Livro: Lula provou inocência em todas ações e inquéritos que foram julgados e concluídos ;
Contexto: Boa parte das vitórias de Lula na Justiça decorrem não por ter provado sua inocência no mérito, mas por decisões do Supremo que consideraram o ex-juiz federal Sérgio Moro parcial; e a 13ª Vara Federal de Curitiba incompetente para julgar os casos.
TRÍPLEX DO GUARUJÁ
Livro: A defesa provou que Lula nunca foi dono, recebeu nem foi beneficiado pelo apartamento no Guarujá. Sérgio Moro o condenou por “atos indeterminados”, em trama que sempre tratou Lula como inimigo a ser derrotado, não como réu a ser julgado ;
Contexto: As condenações foram derrubadas não porque a defesa provou que as acusações, no mérito, eram improcedentes, mas porque o STF considerou que o foro de Curitiba era incompetente para jugar o caso e considerou parcial a atuação de Moro. Os “atos indeterminados” se referem a uma das condenações do caso, por corrupção passiva, em que o MPF não provou que ato de ofício Lula teria praticado em troca da suposta propina.Para Moro, não era preciso essa caracterização para configurar corrupção passiva pois em muitos casos os atos podem ser praticados “assim que as oportunidades apareçam”.
SÍTIO DE ATIBAIA
Livro: A defesa provou que Lula nunca recebeu dinheiro da Odebrecht para pagar reformas no sítio, que nunca foi dele ;
Contexto: As condenações foram derrubadas não porque a defesa provou que as acusações, no mérito, eram improcedentes, mas porque o STF considerou que o foro de Curitiba era incompetente para jugar o caso e considerou parcial a atuação de Moro.
QUADRILHÃO DO PT
Livro: A Justiça arquivou a denúncia por verificar que o MPF não apontou nenhum crime de Lula, da ex-presidente Dilma Rousseff, de seus ex-ministros ou dirigentes do PT. Responsável pela denúncia, o então procurador-geral, Rodrigo Janot, confessou, em livro, que só fez a falsa acusação para atender um pedido de Deltan Dallagnol e da força-tarefa da Lava Jato;
Contexto: A Justiça absolveu Lula e Dilma e os outros acusados. Não é verdade que Janot confessou em livro ter forjado a denúncia do quadrilhão do PT. Ele diz ter sofrido pressão de Dallagnol e outros procuradores para mudar a ordem das denúncias e apresentar rapidamente a relativa ao PT. (Ranier Bragon, Folhapress)