Advogados consultados pela Folha dizem que não é possível afirmar que o presidente Jair Bolsonaro ou membros de sua família tenham obstruído a Justiça ao acessar as gravações da portaria de seu condomínio na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Para caracterizar a obstrução, segundo eles, seriam necessárias evidências de que Bolsonaro tivesse como objetivo atrapalhar as investigações.
Os áudios da portaria indicam que Élcio de Queiroz, um dos suspeitos de matar a vereadora Marielle Franco, acessou o condomínio no dia de sua morte, em 14 de março de 2018, com autorização de outro suspeito, Ronnie Lessa, que morava no prédio. O crime completou 600 dias nesta segunda (4).
A gravação contradiz anotação na planilha do condomínio, que mostrava que Élcio havia ido para a casa 58, de Jair Bolsonaro, e depoimento de um porteiro, que disse que foi o presidente quem liberou sua entrada. A história foi revelada pela TV Globo na noite do último dia 29.
No dia seguinte à reportagem, o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, divulgou dois vídeos em que reproduzia os áudios da portaria. Na gravação, fica indicado que Élcio foi liberado por um homem na casa 65, de Ronnie Lessa. Os áudios já estavam nas mãos da Polícia Civil desde o início de outubro e do Ministério Público desde o dia 15.
No último sábado (2), declaração de Bolsonaro a jornalistas provocou forte reação nas redes sociais e na oposição, que argumentaram que o presidente havia cometido obstrução da Justiça. Na ocasião, ele disse: “Nós pegamos [o áudio] antes que fosse adulterado, pegamos lá toda a memória da secretária eletrônica, que é guardada há mais de anos, a voz não é minha”.
O advogado criminalista Fernando Castelo Branco afirma não enxergar, neste caso, a caracterização de obstrução da Justiça. “Andar por esse caminho seria esticar demais a corda. Precisaria ter havido uma intenção deliberada de atrapalhar as investigações”, diz.
Segundo ele, a obstrução é caracterizada por qualquer tentativa de adulterar, ocultar ou destruir provas.
Ainda que não existam evidências de que o presidente tenha atuado neste sentido, o professor afirma que Bolsonaro agiu de forma inadequada. “Não é papel do presidente da República se ater a este tipo de situação, ainda mais fazendo análise de prova que interessa à elucidação de um crime gravíssimo.”
Conrado Gontijo, advogado criminalista e doutor em direito penal pela USP, concorda que não é possível dizer, por enquanto, que Bolsonaro tenha obstruído a Justiça ao acessar o material, mas afirma que o caso precisa ser investigado.
Gontijo afirma que a situação pode ser pior se Bolsonaro tiver acessado as gravações antes dos investigadores —foi essa a interpretação que o advogado fez da fala do presidente. Nesta hipótese, a prova original terá sido contaminada.
No entanto, se o presidente acessou as gravações somente após a polícia e o Ministério Público, o advogado diz não ver problemas. “Se o conteúdo já estava preservado, não vejo problema, porque nada que ele fizesse poderia interferir no rumo das investigações. De qualquer maneira, precisa ser investigado, porque não é um personagem distante da investigação. Ele foi mencionado”, afirma Gontijo.
Líderes da oposição protocolaram representação nesta segunda pedindo que o Ministério Público faça uma nova perícia no áudio do porteiro. (Folha de S. Paulo)