Fevereiro soma três feminicídios em meio ao debate sobre mudanças no sistema de proteção

FOTO:  MARCOS MALUF/ARQUIVO
FOTO: MARCOS MALUF/ARQUIVO

Prisão do 3º autor contou com apoio da PRF para monitorar região do esconderijo

Enquanto issovítimas de violência seguem relatando falhas e atrasos nos processos judiciais em MS

Mato Grosso do Sul já contabiliza, em 2025, três casos de feminicídio, todos eles em fevereiro e dos quais, em dois as vítimas tinham solicitado medidas protetivas. O caso mais recente aconteceu na noite de terça-feira (18), quando uma mulher indígena de 28 anos, identificada como Juliana Dominguez, foi assassinada pelo companheiro com golpes de foice em Dourados. Juliana morava na aldeia Nhum Porã, localizada à margem da BR-163.

A DAM (Delegacia de Atendimento à Mulher) de Dourados está conduzindo a investigação do primeiro caso do ano no município. O corpo de Juliana passará por exame necroscópico antes de ser liberado para sepultamento.

O principal suspeito, Wilson Garcia, fugiu do local do crime em uma bicicleta e foi localizado pela polícia no fim da manhã de ontem (19). Ele fugiu para uma aldeia em Caarapó, de onde ele é natural. As circunstâncias do assassinato indicam que houve uma discussão entre o casal antes do crime. Durante essa briga, Wilson teria utilizado um facão e desferido dois golpes na cabeça de Juliana.

O filho de apenas 8 anos, presenciou o assassinato e correu até a casa de uma tia em busca de ajuda. A tia imediatamente acionou as autoridades. Quando os agentes chegaram ao local, Juliana já estava morta, sem chance de socorro. A perícia encontrou um facão sob o corpo da vítima, sugerindo que ela tenha tentado se defender.

Outros casos

No dia 12 de fevereiro, em Campo Grande, Vanessa Ricarte, de 42 anos, foi morta pelo ex-noivo, Caio Nascimento, horas após obter uma medida protetiva contra ele. O caso gerou grande repercussão nacional após a divulgação de áudios da vítima, nos quais ela relatava a negligência no atendimento da Deam da Capital durante a denúncia e pedido de medida protetiva.

O primeiro feminicídio do ano ocorreu no dia 1º de fevereiro, em Caarapó. O ex-companheiro de Karin Corin, de 29 anos, matou a jovem a tiros. A amiga de Karin, Aline Rodrigues, de 32 anos, também foi assassinada enquanto estava na loja onde o crime aconteceu. Ela também havia solicitado a medida protetiva.

Atendimento masculino é questionado por vítimas

O recente assassinato da jornalista Vanessa Ricarte acendeu um alerta sobre a falha no sistema de proteção à mulher e no não cumprimento da Lei Maria da Penha. A partir de então, diversas mulheres começaram a denunciar não só as agressões sofridas, mas também as falhas e a falta de assistência por parte das autoridades. Em um cenário marcado pela disputa de poder entre a polícia e o judiciário, várias mulheres que sobreviveram a situações de violência têm encontrado coragem para expor os problemas enfrentados e a questionarem como uma unidade especializada para mulheres, tem homens para o atendimento.

Por questões de segurança e respeito às vítimas sobreviventes de violência masculina de gênero, as entrevistas contidas nesta reportagem são anônimas e os nomes foram ficticiamente alterados.

Maria Vitória, uma das vítimas, compartilhou o relato sobre uma agressão sofrida em 2018, quando foi agredida pelo ex-marido na frente do filho. Ela descreve como, após a agressão, teve que buscar o apoio da polícia, mas enfrentou obstáculos ao registrar o boletim de ocorrência.

“Eu fui bem atendida pela assistente social até o momento que falei que já fazia terapia e tinha advogada me orientando quanto à minha relação empresarial com meu ex-marido. Nesse momento, elas disseram que eu teria que falar com a advogada, pois lá não daria para fazer muita coisa. Quando fui registrar o boletim, o escrivão me olhou dos pés à cabeça e perguntou o que eu tinha feito para meu ex-me agredir”, relatou Maria Vitória.

Ela lembra que o escrivão insistiu na pergunta e questionou o motivo do seu medo, além de afirmar que as lesões não eram suficientes para corpo de delito e desaconselhar a solicitação de medida protetiva. “Saí de lá arrasada, com um papel na mão e a fala de que ele seria chamado e depois entrariam em contato. Mas só anos depois o processo andou”, completou.

Maria Flor, que também enfrentou o sistema de atendimento policial, compartilhou um relato igualmente perturbador. Ela falou sobre um atendimento desumano que recebeu quando procurou a delegacia após ser agredida em 2017.

“O policial civil era homem. Uma má vontade absurda. Me perguntou o que eu tinha feito para meu ex-me bater. Não me orientou a fazer corpo de delito nem a solicitar medida protetiva. Fui agredida como uma boneca. Minha irmã viu meu estado e depois me disse que eu não deveria ter denunciado. E quando vi a sentença, ele foi condenado a pagar R$1500, mas não pagou”, relembrou Maria Flor.

Ela enfatiza que o atendimento psicológico foi bom, mas a orientação jurídica e policial falhou completamente. “O policial me questionava, quase como um julgamento. Eu estava toda machucada, mas não tinha sangramentos visíveis”, lamentou.

Outro depoimento de Maria das Graças revela os obstáculos encontrados no atendimento da Delegacia da Mulher. Ela procurou a delegacia após ser agredida verbalmente por seu ex-marido e após ele agredir sua mãe, de 72 anos, causando uma lesão grave.

“Fui muito mal atendida pelo escrivão, que era homem e me tratou com frieza. Ele foi indiferente e perguntou se minha mãe tinha registrado a ocorrência. Depois de contar a minha história, ele ainda duvidou de mim. Na delegacia da mulher, o clima era péssimo. Mulheres agredidas, sendo ignoradas. A delegada estava mais preocupada em conversar sobre outros assuntos, sem se importar com o que estávamos vivendo.” Maria das Graças relatou que, apesar de buscar ajuda, não teve acompanhamento adequado e a violência em seu processo judicial também não avançou. “A minha medida protetiva venceu em novembro, e nem a polícia nem a guarda fizeram ronda. Até hoje, não me ligaram nem para saber se estou viva ou morta”.

Sequência de falhas

Esses relatos, infelizmente, não são casos isolados. Muitas mulheres enfrentam não só a violência em casa, mas também um sistema de justiça e policiamento que falha em protegê-las adequadamente.

“O que falta é uma mudança real no atendimento inicial, quando a vítima se apresenta à delegacia. As pessoas não estão preparadas para atender de forma humanizada e, pior, as delegacias e o judiciário demoram anos para dar andamento a esses casos. Muitas vezes, as vítimas se sentem mais inseguras do que antes”, afirmou uma das entrevistadas.

Esperança em meio à insegurança

O Ministério das Mulheres anunciou a conclusão de mais três Casas da Mulher Brasileira em Mato Grosso do Sul e a implementação de um sistema unificado de atendimento. Além disso, o Governo do Estado fala em modernização com novas tecnologias e o Tribunal de Justiça de MS anunciou a abertura de uma 4ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Campo Grande e a construção do Fórum da mulher, criança e idoso, com a promessa de mais agilidade nos processos.

O documento também apresenta sugestões específicas de aprimoramento para cada órgão que atua na Casa da Mulher Brasileira, como a implementação da gravação do depoimento da mulher na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, assegurando um registro fiel e diminuindo a revitimização durante o processo investigativo.

No que tange à gestão do equipamento, o relatório propõe a coordenação compartilhada entre o governo estadual e o municipal, garantindo decisões conjuntas e alinhadas ao Programa Mulher Viver sem Violência, além da inclusão de uma representante do Ministério das Mulheres nas reuniões trimestrais do Colegiado Gestor.

No entanto, as vítimas, como relatado, não acreditam que essas ações sejam suficientes. O que elas realmente buscam é um sistema de atendimento mais eficiente e integrado, onde o primeiro contato com a polícia e o judiciário seja realizado com a devida empatia, respeito e celeridade.

“É preciso um tratamento especializado desde o momento que a mulher chega à delegacia. A fala dela precisa ser ouvida com seriedade, e não como se fosse uma justificativa. Caso contrário, ela não vai mais confiar no sistema e muito menos denunciar”, concluiu uma das entrevistadas.

Enquanto a burocracia persiste e os processos demoram anos para se resolverem, o que as vítimas realmente necessitam é de um sistema que funcione de maneira eficaz, com um atendimento que as proteja de fato e que respeite suas histórias de dor e superação.

“A discriminação começa onde deveria haver proteção. E antes da discriminação de gênero, existe uma discriminação de classe, como se alguns não pertencesse à categoria de proteção estatal. Infelizmente, o caso da Vanessa só ganhou destaque por ela ser de certa forma ‘figura pública’. Do contrário, seria mais um engavetado como ‘fatalidade’ já que se tratava de uma pessoa ‘esclarecida’”, pontua uma das entrevistadas.

Sejusp nega afastamento de Delegadas da Deam

A Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública) de Mato Grosso do Sul negou que tenha recebido pedidos de transferência de delegadas da Deam de Campo Grande. A Sejusp afirmou que os serviços prestados pela unidade continuam funcionando normalmente, com atendimento 24 horas por dia.

Após críticas relacionadas ao atendimento de um caso de feminicídio, 12 delegadas da Deam, incluindo a titular Elaine Cristina Ishiki Benicasa, colocaram seus cargos à disposição. A ação foi uma demonstração de solidariedade às colegas afastadas durante as investigações sobre o atendimento prestado à jornalista.

A Secretaria de Justiça e Segurança Pública reforçou que, apesar das movimentações internas, o atendimento às mulheres vítimas de violência não será comprometido. Medidas estão sendo tomadas para assegurar a continuidade e qualidade dos serviços da Deam.

Por Suelen Morales

 

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