Por Monique Rodrigues do Prado
O cenário de paralisação fez muitos estudiosos olhar para a COVID-19 como um vetor de discussão de problemas estruturais que a assolam a sociedade brasileira, demonstrando que a crise que aparenta ser exclusivamente de natureza sanitária na realidade brasileira acentua outros marcadores sociais que antecedem o vírus.
Com efeito, questões relacionadas ao saneamento básico, à habitação, à pobreza, à fome e à desproporcionalidade de renda para acesso a serviços essenciais ganham relevância, uma vez que por aqui milhões de famílias já vivem de forma precária, o que implica, por exemplo, na dificuldade do cumprimento das recomendações tanto da Organização Mundial da Saúde, quanto do Ministério da Saúde.
Nesse sentido, em meio a uma pandemia mundial, a omissão estatal brasileira, seja operando a engrenagem da máquina pública, seja como órgão regulamentador das empresas privadas que prestam serviços essenciais, revela o impacto direto na vida dos brasileiros.
Ademais, os indicadores demonstram que pensar desigualdade social no Brasil é pensar raça, já que no caso da saúde quase 80% dos brasileiros que depende do Sistema Único de Saúde (SUS) se autodeclara negro, razão pela qual desenvolver políticas nacionais que alcance essa população é fundamental.
No setor de saneamento básico, por exemplo, dados do Instituto Trata Brasil demonstram que 48% dos brasileiros ainda vivem sem tratamento de esgoto. O Brasil despeja o equivalente a 6 mil piscinas olímpicas por dia de esgoto sem tratamento na natureza. Além disso, trabalhadores que residem em moradias sem acesso ao saneamento básico recebem 52,4% a menos que aqueles que vivem em residências com acesso ao saneamento.
A Organização Mundial da Saúde aponta que a cada U$ 1,00 investido em saneamento básico são economizados U$ 4,00 em saúde. As regiões Sul e Sudeste são aquelas onde se recebe o maior investimento em saneamento, ocupando as primeiras cinco posições as cidades de Santos (SP), Franca (SP), Maringá (PR), São José do Rio Preto (SP) e Uberlândia (MG). Nas últimas posições estão respectivamente Manaus (AM), Santarém (PA), Porto Velho (RO), Macapá (AP) e Ananindeua (PA), todas na região Norte.
Do ranking acima mencionado, extrai-se que é notória a seletividade do poder público, pois o acesso aos serviços de abastecimento de água potável, coleta e tratamento de esgoto, limpeza urbana, manejo de residos sólidos, etc. são distribuídos conforme o interesse econômico regional e não efetivamente tido como direito universal de todos os brasileiros.
A habitação e a moradia também são marcadores fundamentais, visto que a frase que mais tem-se ouvido como recomendação é “fique em casa”. Ocorre que, cerca de 12,9 milhões das famílias brasileiras moram em imóvel alugado, segundo dados do Pnad de 2018, não sendo surpresa que, como consequência da pandemia, virá a crise imobiliária, já que não vai demorar para que muitos comecem a ser despejados.
Como se não bastasse, crescerá o número de pessoas em maior vulnerabilidade socioeconômica como é o caso daqueles que encontram-se em situação de rua sem qualquer moradia. Em 2015, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou que 101.854 pessoas encontram-se nessas condições, número que certamente não corresponde à realidade, visto que o levantamento fora feito apenas com base naquelas pessoas que estavam no Cadastro Único.
Segundo o Censo de População de Rua publicado em 2019, mais da metade dessa população tem entre 25 e 44 anos e 82% das pessoas em condição de rua são homens. Quanto ao critério racial, 67% desse grupo vulnerável se autodeclara negro, apontando como uma das causas principais para viver na rua o desemprego, chegando a 30%, mas que 89% não recebem qualquer benefício social para a sua sobrevivência. No tocante à escolaridade, a pesquisa mostrou que 74% sabiam ler e escrever, mas que 64% não concluíram o ensino fundamental.
Embora as entidades de direitos humanos pressionem o poder público para obter dados mais precisos sobre a população de rua, a invisibilidade institucional dessa população é tão gritante que o IBGE revela não fazer a referida pesquisa agasalhando-se nas desculpas de dificuldades operacionais para identificar as pessoas nessa situação.
No tocante ao quadro de extrema pobreza, 13,5 milhões dos brasileiros viviam com menos que U$ 1,90 por dia em 2018. Esse número é maior que a população inteira de alguns países como a Bolívia, Bélgica, Cuba, Grécia e Portugal. Na linha da pobreza, 52,5 milhões dos brasileiros no mesmo ano viviam com R$ 420,00 por mês. No estudo também ficou demonstrado que 72,7% que estão na pobreza são pretos e pardos.
O número contrasta com o relatório da Oxfam publicado pela Forbes que revelou que em 2018 os cinco maiores bilionários brasileiros, todos brancos, concentravam juntos a riqueza equivalente a da metade mais pobre da população do país. Entre as empresas encontram-se o banco Safra, a Inbev e o Facebook, cujos empresários acumulam a fortuna de U$ 84,9 bilhões. É isso mesmo, o patrimônio desses bilionários brasileiros é em dólar, o que pela conversão geraria R$ 449,97 bilhões de riqueza.
Nesse sentido, enquanto os trabalhos relacionados ao cuidado são subestimados, os bilionários e milionários têm o seu dinheiro trabalhando para gerar mais dinheiro livres de impostos que incidam sobre suas fortunas. Nota-se que, desde a Constituição Federal de 1988, há previsão do tributo sobre grandes fortunas que está disposto no art. 153, VII, todavia nunca foi instituído pelos nossos congressistas.
No setor da saúde, que hoje se encontra nos holofotes do mundo e não sendo diferente no Brasil, é possível observar que 75% da população brasileira depende do Sistema Único de Saúde enquanto que 25% utilizam a saúde suplementar pelos planos de saúde.
Em 2019, segundo o portal de transparência da União, foram gastos na área da saúde R$ 141.18 bilhões, o que equivale a R$ 668,02 por ano e R$ 55,67 por mês de investimento per capita. Enquanto isso, o investimento das famílias em planos de saúde aumentou no mesmo ano 8,24%, aumento causado, sobretudo, pelo reajuste nos preços da mensalidade dos convênios.
O resultado é que mais da metade dos brasileiros não possuem plano de saúde e dependem exclusivamente do serviço público.
Por tudo isso, é possível observar que a desigualdade brasileira tem um alvo específico manifestando-se pela cor e condições econômicas dos indivíduos. Esses marcadores que já se mostravam robustos contra a população negra e pobre mesmo antes da pandemia, tende a ser mais expressivo após o seu encerramento.
Além disso, ressalvadas as proporções do colapso sanitário dado o surto pandêmico, é inadmissível que exista uma parcela enorme da população que sequer consiga atender as medidas de prevenção impostas pela Organização Mundial da Saúde e Ministério da Saúde para combater a COVID-19, seja pela falta de abastecimento de água, seja pela falta de acesso a saneamento básico, seja pelo confinamento em condições que não permitem o distanciamento social ou pela completa omissão estatal àqueles que de fato não tem um teto para “ficar em casa” e “fazer home office”.
Se de um lado esses indicadores revelam números alarmantes, de outro lado escondem as vidas e os nomes daqueles que são os mais vulneráveis, os quais desde que o Brasil é Brasil reivindicam seriedade do Estado Brasileiro para tratar a reparação histórica como demanda estrutural, visto que essa camada é a que mais sofre em momentos de agravamento de crise como esse que estamos vivenciando.
Por outro lado, a população negra tem-se mobilizado de forma estratégica no combate a pandemia, como vimos na ação civil pública ajuizada pela advogada negra Adélia Soares que teve a medida liminar concedida garantindo que as operadoras não suspendam os serviços básicos como gás, telefone, luz e água.
Talvez, retomar a discussão sobre a renda básica universal para além desse período crítico, se mostre mais importante do o empréstimo público governamental aos banqueiros.
** A autora é advogada especialista na área médica, integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB – Subseção Osasco e participante do Comite de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil e da Educafro