Muito mais que evitar desperdícios, tecnologia tem sido fundamental na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas

Foto: Roberta Martins
Foto: Roberta Martins

Takadu reduziu o índice de perda em 34%, percentual similar ao que faltou de chuva para Campo Grande atingir o volume esperado

Os efeitos das mudanças climáticas têm atingido quase que o mundo todo e em Campo Grande, a situação não foi diferente: o calor tem alcançado altas temperaturas e a chuva insiste em faltar. Com isso, a Capital sul-mato-grossense viu uma tecnologia israelense se tornar peça-chave na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

A plataforma Takadu, usada pela Águas Guariroba, que há 25 anos cuida do abastecimento de água tratada e da coleta e tratamento do esgoto da Capital, reduz os índices de perdas de água tratada de 53% para 19,4%. O resultado, além de representar eficiência e economia, é praticamente o mesmo percentual de chuva que deixou de cair na Capital até meados de outubro. Choveu 33% a menos do que o esperado de 1º de janeiro a 15 de outubro.

Segundo dados do Cemtec-MS (Centro de Monitoramento do Tempo e do Clima de Mato Grosso do Sul), a média histórica entre maio e setembro é de 294,4 milímetros. Neste ano, choveu apenas 135,8 mm, menos da metade do esperado. Desde janeiro até 15 de outubro, a média era de 1.085,4 mm, mas o volume observado foi de 726,6 mm.

“O ano de 2024 foi o mais quente da história do planeta e também o mais quente já registrado em Mato Grosso do Sul”, lembra o meteorologista Vinícius Sperling, do Cemtec. “Em 2023, tivemos o segundo ano mais quente. Isso mostra que estamos dentro de uma sequência de extremos, com períodos de seca mais longos e temperaturas cada vez mais altas.”

Sperling explica que os boletins emitidos pelo Cemtec são enviados regularmente às concessionárias de abastecimento e órgãos públicos, permitindo que haja planejamento diante das previsões climáticas. “A previsão de clima não vai te dizer quantos milímetros exatos vão cair em Campo Grande, mas indica se as chuvas tendem a ficar acima, abaixo ou dentro da média. Isso já é suficiente para um planejamento. É uma forma de mitigação e adaptação aos impactos das mudanças climáticas — assim como o uso de tecnologias de gestão da água”, destaca.

Tecnologia e IA a serviço da sustentabilidade

A Takadu, desenvolvida em Israel, país que tem uma escassez hídrica absurda e 80% da água é proveniente do mar, utiliza sensores e inteligência artificial para monitorar a rede de distribuição de água em tempo real. Ela detecta anomalias, como vazamentos invisíveis, antes que causem perdas significativas.

Foto: Roberta Martins

Segundo o gerente de operações da Águas Guariroba, Yago Martins, o sistema faz análises preditivas a partir de milhares de dados coletados. “Ela acompanha sensores, compila as informações e avalia o comportamento da rede. A partir daí, prevê o que deveria estar acontecendo e identifica qualquer desvio. Hoje ela é integrada à tecnologia Asterra, um satélite do Reino Unido que foi usado, inclusive, para encontrar água em Marte”, explica.

O satélite detecta vazamentos por meio da umidade do solo e da presença de cloro, um indicador de água tratada. “Assim, conseguimos identificar onde há umidade anormal e cloro, e direcionamos nossas equipes antes mesmo de o vazamento aparecer na rua. Um vazamento que levaria de 15 a 30 dias para aflorar no asfalto, hoje conseguimos detectar em até seis dias”, completa Yago.

O ganho é direto, dando mais eficiência e menos pressão sobre os mananciais. “Hoje distribuímos cerca de 8 milhões de metros cúbicos de água por mês. Para a população, chegam 6,5 milhões, volume consumido. Então, essa redução de 34% fez com que eu não tivesse que ‘produzir’, por exemplo, 10 milhões de metros cúbicos para entregar o mesmo volume. Com isso, estendemos a vida útil dos aquíferos, das captações superficiais e dos mananciais. Acredito que esse é o foco.”

Proteção dos mananciais e previsões para o futuro

Campo Grande tem duas principais fontes de abastecimento: a subterrânea, proveniente do Aquífero Guarani — uma das maiores reservas de água doce do mundo —, e a superficial, dividida entre as captações dos córregos Lageado e Guariroba.

“Mais da metade da água da cidade vem dessas fontes superficiais. A captação Guariroba é responsável por 40% e a Lageado, por 12%”, detalha Yago.

A concessionária atua fortemente nas APAs (Áreas de Proteção Ambiental) dessas bacias. “A Guariroba é super preservada, fica fora do perímetro urbano. Já a Lageado está dentro da cidade e sofre impacto direto da expansão urbana e do uso do solo. Por isso, desenvolvemos ações de conscientização, reflorestamento e parcerias com universidades para monitoramento”, diz.

Uma dessas parcerias é com a UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), onde um pesquisador utiliza dados da concessionária para prever a vazão do córrego Lageado nos próximos cinco anos. “Ele correlaciona dados de chuva, sensoriamento e nível de barragem. Isso nos ajuda a antecipar cenários e planejar medidas preventivas”, acrescenta Yago.

Durante os meses mais secos, de maio a setembro, a vazão da captação Lageado naturalmente diminui, mas sem comprometer o abastecimento. “A gente nota o impacto, sim, pelas condições climáticas, e é justamente por isso que intensificamos nossas ações nessas áreas. É um trabalho constante de adaptação e resiliência hídrica”, conclui.

Adaptação climática: do global ao local

Para Sperling, do Cemtec, as medidas adotadas por concessionárias e governos fazem parte de um esforço mais amplo, justamente, de adaptação climática. “Há ferramentas conhecidas no mundo todo, como as cisternas, uma solução simples e eficaz de captar água da chuva em períodos úmidos para usar na seca. No Nordeste, isso é exemplo de sucesso, e Mato Grosso do Sul também está lançando editais para instalação de cisternas. Essas estratégias são formas diretas de adaptação”, explica.

O meteorologista lembra que, diante da gravidade do cenário global, negar as mudanças climáticas já não é mais possível. “Temos incêndios florestais fora de época, secas prolongadas e temperaturas recordes. No ano passado, rios de Mato Grosso do Sul praticamente secaram. A falta de chuva reduz o volume dos rios e córregos, e o calor intenso aumenta a evaporação. É um ciclo que exige resposta rápida — e a tecnologia tem sido uma aliada nesse processo.”

“O aquecimento global está levando nosso planeta ao limite”

As mudanças climáticas se referem a um conjunto mais amplo de alterações no sistema climático da Terra, incluindo o aumento da temperatura média global – o aquecimento global. Nos últimos dias, o secretário-geral da ONU, António Guterres, admitiu que a meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C em relação à era pré-industrial não será alcançada. “Uma coisa já está clara: não conseguiremos conter o aquecimento global abaixo de 1,5°C nos próximos anos”, disse Guterres em uma reunião na OMM (Organização Meteorológica Mundial), da ONU, em Genebra. “Ultrapassar o limite agora é inevitável.”

Esse objetivo de frear o aquecimento do planeta em 1,5°C em comparação com os níveis anteriores à Revolução Industrial é o objetivo principal do Acordo de Paris, assinado em 2015.

A declaração foi dada a poucos dias do início da COP30, a conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas a ser realizada em Belém. “O aquecimento global está levando nosso planeta ao limite”, afirmou. “Cada um dos últimos dez anos foi o mais quente da história. O calor do oceano bate recordes e destrói ecossistemas. Nenhum país está a salvo de incêndios, inundações, tempestades e ondas de calor.”

“Cada metro cúbico de água que eu deixo de perder, eu consigo preservar ele no nosso meio ambiente”

Para o diretor-presidente da Águas Guariroba, Gabriel Buim, o uso de tecnologia e o compromisso ambiental caminham juntos. “Quando falamos de perdas, não estamos falando apenas de números. Estamos falando de sustentabilidade. Cada litro de água que deixamos de perder representa menos pressão sobre os mananciais, mais eficiência e mais segurança hídrica para a população”, afirma.

Gabriel destaca ainda que a experiência de Campo Grande é hoje referência nacional. “O índice de perdas na casa dos 19% é um dos menores do país, ainda mais numa cidade grande. A tendência, quando você tem cidades pequenas, é mais fácil de você operar, você tem esses índices menores. Nas cidades maiores, a tendência é que os índices sejam maiores. A média brasileira hoje é de 45% de perdas e Campo Grande é referência com 19%”, reitera.

Vale ressaltar que, no país, o nível aceitável de perdas de água foi definido pela Portaria 490/2021, do MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional), que indica que para um município contar com níveis excelentes, deve ter no máximo 25% em perdas na distribuição e 216 L/ligação/dia em perdas por ligação. Em 2022, somente nove dentre os 100 municípios mais populosos do Brasil atendiam a essas metas; Campo Grande é um deles.

Segundo o Instituto Trata Brasil, o Brasil desperdiça mais de 7,6 mil piscinas olímpicas de água potável todos os dias devido à ineficiência nos sistemas de distribuição (cerca de 7,0 bilhões de m³). Água tratada perdida poderia abastecer 54 milhões de brasileiros por um ano ou toda a população do Rio Grande do Sul (10,6 milhões de habitantes) por mais de cinco anos.

“Os efeitos das mudanças climáticas são uma realidade vivida no país, refletindo-se em impactos diretos no acesso à água potável. Reduzir as perdas significaria aumentar a disponibilidade de recursos hídricos no sistema de distribuição sem a necessidade de aumentar o volume de água captado e de explorar novos mananciais, o que resulta em menores custos e evita prejudicar o meio ambiente”, diz trecho do documento do Instituto Trata Brasil.

Em Campo Grande, conforme a própria concessionária, o volume de água poupado por meio de Programa de Redução de Perdas é capaz de abastecer Campo Grande por cinco meses. Aproximadamente, o município deixou de perder cerca de 43.461.659 de metros cúbicos de água por ano.

Ainda conforme o diretor-presidente, o sucesso na Capital é fruto da integração com outras ferramentas, da gestão local e da parceria com o poder público e a comunidade. “Não se trata só de evitar desperdícios, e sim de garantir o futuro do abastecimento em um cenário de mudanças climáticas cada vez mais intensas”, argumenta.

Mas, para além das tecnologias, a Águas Guariroba também investe pesado em infraestrutura, que acaba por ajudar a evitar desperdícios na distribuição de água tratada. “Temos vários processos para buscar eficiência. Um deles é a substituição de redes antigas, que ainda representam pontos de vulnerabilidade. É engenharia pura: trocar, modernizar e dar mais durabilidade à rede.”

Ainda para amenizar os efeitos da alteração climática, a concessionária utiliza sistemas de gestão para predição do volume de produção. “Tem uma inteligência artificial que fala quanto de volume que eu vou ter que produzir em função da projeção do clima da cidade e também do dia da semana. No sábado, que o consumo é maior, eu tenho que ter uma produção maior. Na segunda, o consumo é menor e eu já preciso produzir menos. E o sistema vai falando para os operadores o quanto temos que produzir”, afirma o diretor-presidente.

Entre números, sensores e algoritmos, o resultado mais visível do uso de tecnologias está nas torneiras que hoje jorram água limpa aos campo-grandenses. A redução de perdas não é apenas um indicador de eficiência. “Cada metro cúbico de água que eu deixo de perder, eu consigo preservá-lo no nosso meio ambiente”, enaltece Buim.

Em uma cidade que chove menos do que deveria, mas desperdiça cada vez menos, a água deixou de ser apenas um recurso e passou a representar um futuro sem problemas com abastecimento, fazendo das tecnologias um verdadeiro instrumento de vida.

Atualmente, o índice de cobertura de água tratada em Campo Grande é de cerca de 99%, considerado universalizado e acima do estabelecido pelo Novo Marco Legal do Saneamento para 2033. Já no cenário nacional, 32 milhões de pessoas não têm acesso a água potável em suas residências.

Água que traz vida

Enquanto os sistemas inteligentes monitoram o subsolo, o resultado se reflete na superfície, e um exemplo é a Comunidade Homex, maior ocupação urbana do estado, que passou quase uma década sem acesso à rede de água tratada. Hoje, o cenário que vemos é outro. As casas têm água tratada saindo nas torneiras e crianças aliviando o calor no quintal.

“Era uma tristeza. A gente chegou a fazer o famoso ‘gato’, mas, na parte mais baixa da comunidade, a água custava a chegar. Às vezes, pingava ou só saía de madrugada”, conta o líder comunitário, Léo Rodrigues.

Além do sofrimento diário, a falta de água potável trazia doenças. “Muitas pessoas, principalmente crianças, ficavam doentes por causa da água. Hoje essa realidade é outra. Graças a Deus”, comemora.

Jocely da Silva tem seis filhos e foi uma das primeiras que chegou à comunidade. Para ela ter água encanada, melhor muito, principalmente por não ter mais que armazenar água. “A gente sofria muito, água fraca e isso quando tinha. Hoje, graças a Deus, não temos mais problemas e também não estamos mais irregulares”, desabafa.

A moradora Laís Nogueira, mãe de quatro filhos, viveu esse período desde o início da ocupação. “Cansei de buscar água na carriola. Era todo dia. Para beber, eu trazia da casa da minha sogra, que mora em outro bairro. Quando acabava, a gente fervia a água daqui mesmo, mas, mesmo assim, as crianças passavam mal. Agora é outro tempo, é um alívio enorme”, disse, emocionada.

Menos doenças, mais saúde

Dados da Sesau (Secretaria Municipal de Saúde Pública) reforçam o impacto direto da chegada da água tratada na saúde da população. Nos últimos dez anos — de 2015 até outubro de 2025 — houve queda consistente nos casos de doenças relacionadas à veiculação hídrica, como rotavírus, leptospirose, esquistossomose e toxoplasmose, todas fortemente associadas à falta de água encanada ou à utilização de fontes contaminadas.

No caso da esquistossomose, conhecida também como doença do caramujo, foram registrados apenas nove casos em uma década, sendo o último em 2022. A toxoplasmose teve 419 casos no período, com o pico em 2017 (100 registros) e apenas um caso confirmado até outubro deste ano.

A leptospirose somou 39 casos desde 2015, cinco deles em 2025. Já o rotavírus, responsável por quadros severos de diarreia em crianças, teve 12 ocorrências em dez anos, sendo a última no ano passado. Dados que evidenciam que o acesso à água potável é também um fator de prevenção em saúde pública.

Planejamento e obras para o futuro

Os próximos anos serão de expansão, em especial sobre coleta e tratamento de esgoto nas sete regiões da cidade. O cronograma prevê aproximadamente 700 quilômetros de rede para beneficiar mais de 66 mil famílias.

Entre 2026 e 2028, a empresa deve investir R$ 750 milhões na ampliação de redes, estações e reservatórios. “A meta é atingir 98% de cobertura de coleta e tratamento de esgoto. Isso significa mais de 700 quilômetros de novas tubulações — distância equivalente a ir de Campo Grande ao interior de São Paulo. É um desafio logístico, mas essencial para garantir o futuro da cidade”, afirma.

Hoje o percentual de cobertura de coleta e tratamento de esgoto na Capital está na casa dos 94%. “Quando a gente fala: falta só 4% para nós chegarmos nos 98% de cobertura: são 700 quilômetros de rede. Dá para nós sairmos de Campo Grande assentando tubo e chegar no interior de São Paulo para cumprir essa marca. E fazer isso dentro da cidade, sem atrapalhar a vida da população, sem atrapalhar muito o trânsito. Eu acho que ao longo desses 25 anos, a gente foi aprendendo a fazer essa gestão, da execução das obras, a gestão muito próxima da população”, ressalta.

Campo Grande é uma cidade com quase um milhão de habitantes e que segue em pleno crescimento. Conforme o diretor-presidente, as obras entre os anos de 2026 e 2028 já serão executadas, com a concessionária pensando a longo prazo. “Está dentro desse pacote de R$750 milhões que a gente vai investir nos próximos anos, até 2028, e isso já pensando a longo prazo. Temos no nosso cronograma obras de ampliação da ETE (Estação de Tratamento de Esgoto) do bairro Los Angeles, que representa hoje 90% do esgoto tratado de Campo Grande, e também a Estação Ibirussu vai ser ampliada em 2027”.

“Essas infraestruturas você não faz para agora. Vou fazer uma ETE hoje para atender daqui a 2, 3 anos. Não, vou fazer uma ETE para atender 10, 15 anos. Campo Grande é uma cidade que está verticalizando cada vez mais, mas que também está abrindo espaço geográfico. Vemos cada vez mais a ampliação da zona urbana da cidade e temos que estar preparados para isso. E a concessionária está pensando nesse planejamento, sim, a longo prazo. Perfuração de poços, construção de reservatórios, ampliações das estações de tratamento”, finaliza Gabriel.

/

Confira as redes sociais do Estado Online no Facebook Instagram

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *