POR MARINA LOURENÇO, DE SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ela fica em casa o dia inteiro, à espera do marido, que chega só à noite, depois de ficar horas num bar apreciando saias e copos de bebida. Ele pede à mulher que não fique sentida porque vai mudar de vida e, então, recebe dela um beijo, um abraço e um prato de comida.
A letra de “Com Açúcar, com Afeto”, uma das canções mais conhecidas de Chico Buarque, traz esse enredo que, desde a semana passada, vem sendo tão comentado nas redes sociais.
“[As feministas] têm razão. Eu não vou cantar ‘Com Açúcar, com Afeto’ mais. Se a Nara [Leão] estivesse aqui, ela não cantaria, certamente”, diz o compositor na série documental “O Canto Livre de Nara Leão”, do Globoplay.
A decisão de Chico chamou a atenção do público, que se dividiu entre fazer elogios ao cantor e criticar a atitude dele. Isso porque há quem considere a música como machista e quem a veja como uma denúncia contra o machismo. Há também quem ache a escolha do compositor um tipo de autocensura e quem a interprete como parte de um processo natural de revisitação a obras.
“A discussão sobre alterar, mexer ou parar de reproduzir obras é sempre muito complexa. Seja na música, no cinema, na literatura ou em qualquer arte”, diz Simone Pereira de Sá, especialista em cultura pop e música brasileira.
“Vários músicos já fizeram reparos em suas canções. Criolo deixou de usar a palavra ‘traveco’ em ‘Vasilhame’. Roberto Carlos não cantava ‘Quero que Vá Tudo pro Inferno’ por causa da palavra ‘inferno’. Tudo isso é legítimo. O grande problema é quando há uma pressão externa das redes sociais, da cultura do cancelamento.”
Segundo a pesquisadora, a declaração de Chico é fruto dessa onda canceladora das redes, porque surge de forma inesperada, já que não havia nenhum borbulho de críticas à canção –pelo menos, não recentemente.
Chico compôs “Com Açúcar, com Afeto” a pedido de Nara Leão, que lançou a música no disco “Vento de Maio”, em 1967.
Um dos trechos de “O Canto Livre de Nara Leão” mostra Nara dizendo “gosto muito de música em que a mulher fica em casa, chorosa, e o marido na rua farreando”. “Você vê que eu canto ‘Fez Bobagem’, canto ‘Camisa Amarela’ e canto ‘Quem É’. Gosto muito dessas músicas. Então, o Chico fez para mim essa aqui.”
A psicanalista Maria Rita Kehl, que há cinco anos já havia defendido Chico diante de acusações de machismo pela canção “Tua Cantiga”, afirma que “Com Açúcar, com Afeto” é uma música genial. “A letra é uma ironia. Não é o mesmo que ‘Ai que Saudades da Amélia'”, diz Kehl. “Não devemos ser tão sensíveis ao humor e à ironia. Senão, não há mais o trato poético. Eu não gostaria de viver com esse tipo de politicamente correto. E isso não quer dizer que defenda as incorreções políticas.”
A escritora e especialista em teoria literária Amara Moira afirma que toda obra é viva e se transforma com o tempo. “Hoje, ‘Com Açúcar, com Afeto’ é uma canção diferente da dos anos 1960”, diz ela. “É uma música feita para ser machista. Chico quis pôr uma Amélia na letra, mas isso fugiu do seu controle e começou a dizer o oposto do que talvez tenha sido a sua primeira intenção.”
Um homem cantando uma música na qual o eu lírico é o de uma mulher que gosta de ser submissa pode ser, dependendo da leitura, bem problemático, afirma Moira. Segundo ela, canções como “Mulheres de Atenas” e “Geni e o Zepelim” –ambas com eu lírico violento– soam irônicas e denunciadoras com muito mais facilidade, se comparadas a “Com Açúcar, com Afeto”.
Mas, claro, não é uma regra. Quando Lilian Oliveira, Carolina Tod, Nathália Ehl e Rossiane Antunez criaram o site Mmpb, o Música Machista Popular Brasileira, há cinco anos, a canção “Só Surubinha de Leve”, que tem um eu lírico masculino explicitamente violento, estava sendo duramente criticada por fazer apologia do estupro.
A letra, de MC Diguinho, traz versos como “surubinha de leve com essas filha da puta/ taca bebida depois taca pica/ e abandona na rua” e causou tanto alvoroço nas redes que o Spotify chegou até a dizer que removeria a faixa de sua plataforma –a promessa, porém, não foi cumprida.
“‘Só Surubinha de Leve’ é um exemplo de canções que não dá para relativizar o eu lírico”, diz Oliveira. “Agora, no caso de ‘Com Açúcar, com Afeto’ é preciso uma reflexão. Não se trata de apontar dedos, mas há músicas que precisam ser refletidas e, por isso, admiro artistas como o Chico, que se propõem a discutir suas letras.”
O site Mmpb traz críticas a dezenas de letras nacionais, como “Ai que Saudades da Amélia”, de Mário Lago, “Vou te Contar Tintim por Tintim”, de Cartola, “Mesmo Que Seja Eu”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, “Marina”, de Dorival Caymmi, e “Lacradora”, de Claudia Leitte.
Assim como Oliveira, Tamiris Coutinho, autora de “Cai de Boca no Meu B#c3t@o: O Funk como Potência do Empoderamento Feminino”, elogia a decisão de Chico em parar de cantar “Com Açúcar, com Afeto”.
“É hipercoerente”, diz ela. “Não faz mais sentido cantar esse tipo de música. A gente sabe bem que relações abusivas continuam a existir e levantar esse tipo de bandeira numa canção não se encaixa no mundo atual.” Segundo a escritora, cantar “Com Açúcar, com Afeto” nos dias de hoje é romantizar a violência contra a mulher e ignorar a mudança de valores entre as décadas de 1960 e 2020.
Fernanda Takai, porém, disse em seu Twitter que a música já fazia parte de seu novo repertório e será mantida. “Adoro a canção e a história sobre como surgiu. Muito bem escrita”, escreveu a artista. “É uma letra que dá voz a uma personagem, um espaço bem delimitado na arte.”