Em passagem por Campo Grande, o promotor de Justiça Roberto Livianu conversou com o Jornal o Estado MS sobre a situação atual do Brasil
O Brasil está na contramão do mundo. Mesmo com tantos avanços é visível e fatal a corrupção. É sistêmica. Cresceu e se reproduziu como algo cultural. Ou seja, está dentro do funcionamento dos órgãos, da atitude das pessoas. Este desvio de conduta existe no mundo todo, a diferença é como se lida com ele. É a dureza das regras. A quantidade de foro privilegiado é um dos maiores indícios da frouxidão das nossas leis. Somos destaque mundial por até vereadores se beneficiarem do foro ao passo que nem o homem mais poderoso do planeta, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem este direito.
Aliás, a Suécia possui uma Lei Anticorrupção, a chamada Lei da Transparência, desde antes da criação dos Estados Unidos, precisamente dez anos antes. Ela é de 1766 e é pioneira. Indo de encontro a tudo isso, de acordo com o estudo “Foro Privilegiado: pontos negativos e positivos”, produzido por Newton Tavares Filho, com análise feita em 16 países, nenhum destes tem tantas hipóteses do benefício a autoridades como o previsto na Constituição Brasileira de 1988.
Para o promotor de São Paulo Roberto Livianu, “a corrupção é sistêmica. Você tem uma série de problemas graves que precisam ser combatidos. Quando um deputado federal é processado, o Superior Tribunal Federal (STF) não tem pernas para processar tanta gente e acaba prescrevendo”. Livianu atua na Procuradoria de Justiça de Direitos Difusos e Coletivos, especialmente na proteção do patrimônio público. Idealizador e fundador do Instituto Não Aceito Corrupção, é também autor do livro “Corrupção – Incluindo a Lei Anticorrupção” (2014 – Quartier Latin).
Livianu conta que a Fundação Getulio Vargas (FGV) fez um projeto com o STF que revelou 424 ações penais relativas ao foro privilegiado, levantadas de 2011 a 2016, e destas 0,74% resultou em punição. “O STF, que deve ser o guardião da Constituição, não tem condições de processar essa gente toda. Além do que todos são iguais perante a lei. Por que não ser processado por um juiz de primeiro grau? Tem um senador que chama estes de ‘juizecos’, só que esses juízes que não foram selecionados em chalanas em Brasília passaram por um concurso público. São fiscalizados diariamente pela Corregedoria, pelo Conselho Federal de Justiça, pela sociedade nas redes sociais, portanto eu confio muito mais em juízes escolhidos meritocraticamente do que em juízes escolhidos em chalanas. É mais confiável, a fiscalização é melhor, maior e mais intensa”, analisou.
Comparando, o promotor fala de um assaltante de ônibus que levou do cobrador 200 reais. “Esse sujeito não é solto por nada. Ele praticou um roubo. No entanto, quando você tem a corrupção, você está matando gente. Corrupção significa que dinheiro não chegou para a saúde e gente morreu em macas de hospitais. Quando você tem corrupção significa que a criança pobre, que tem de estudar em escola pública, não pôde ter educação adequada e não teve oportunidades. Além disso, pode ter sido cooptada pelo crime organizado. Então, a corrupção infla índices de criminalidade. Corrupção mata gente!”
Mundo já reagiu contra os malefícios da propina, mas por aqui a resposta é lenta
Sobre o atraso do Brasil e o país estar na contramão do mundo, Livianu resgata o lugar-comum dos paraísos fiscais e enfatiza a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, aprovada no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), assinada em 17 de dezembro de 1997 pelos Estados-membros, juntamente com Argentina, Brasil, Bulgária, Chile e República Eslovaca. Entrou em vigor no ano de 1999. No Brasil, a Convenção foi ratificada em 15 de junho de 2000 e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 3.678, de 30 de novembro de 2000.
“Esta ideia de paraísos fiscais mudou muito. Nós temos um ponto de virada importante: a Convenção da OCDE. A chamada Convenção Antipropina. Em muitos lugares do mundo você tinha regras frouxas em relação ao fluxo do dinheiro, regras frouxas em relação ao combate à corrupção e, pior, países como Alemanha e França abatiam do Imposto de Renda dinheiro de propina (os valores que eram pagos pelas empresas a título de propina eram abatidos no Imposto de Renda). Você tem uma mudada de chave em nível internacional. A partir daí, a ideia de paraísos fiscais passa a ser quase inexistente em razão do comprometimento do mundo.”
“Desde então existem mudanças no sentido de combater a corrupção e não só isso, mas no sentido de ter um compromisso internacional. Muitas coisas vêm acontecendo e se consolida a ideia de movimento internacional contra a corrupção em vários níveis, inclusive em relação ao controle do fluxo dos níveis de dinheiro. Existem regras, valores a partir de um certo patamar que tem de informar qual foi o motivo da transação, e os países vão organizando instrumentos, órgãos como o do Brasil que chama Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que quando percebe uma transação atípica, suspeita, informa o ministério público”, diz ainda o promotor de justiça.
‘Corrupto é só o outro, sempre’, comenta Livianu
O promotor de justiça Roberto Livianu também lamenta a consequência da criação familiar, como base para que a corrupção seja endêmica no Brasil, de acordo com o seu diagnóstico. “Os pais têm responsabilidade no combate à corrupção. [Mas] Infelizmente eles formam filhos para serem os mais espertos e não os mais íntegros”, complementa.
Ele inclusive desafia o surgimento de uma iniciativa para reconhecimento moral no ambiente escolar: “Nós precisamos de gincanas escolares para premiar os mais íntegros. Este é o ponto de virada da chave. Não a esperteza”. Sobre a utópica comparação com outros lugares, onde o Índice de Desenvolvimento Humano é bastante avançado, Livianu faz uma ponderação categórica: “Na Dinamarca, as pessoas confiam mais, a governança é estável, e existe a evolução da educação. Já no Brasil o ensino, infelizmente, não é prioridade”.
A reforma política é a reforma das reformas
“Temos de ter coragem de abordar o financiamento de campanha: fonte de corrupção”, afirma o promotor.
Quanto ao sistema político atual, Livianu lembra que um pouco de “humildade faria bem ao Brasil”, principalmente para se espelhar em práticas que dão certo no Primeiro Mundo.
“A Inglaterra usa o voto distrital desde o século 12, e trata-se de um país em que as coisas funcionam bem. Se você instituir aqui o distrito, você aproxima o eleitor do eleito, você gasta menos com campanha e o risco de corrupção é menor. As coisas melhoram”, comenta o promotor.
Diante disso, Livianu cobra pressa para a reforma política, o que ele define como “a reforma das reformas”. “Hoje são 33 partidos, dois foram absorvidos e outros estão em processo de absorção. Nós não temos 33 ideologias. Nem se a pessoa for o mágico da filosofia política não vai conseguir construir. Nós temos de ter oito, dez partidos, e os partidos políticos precisam ter responsabilidade social e prestar contas com responsabilidade.”
” Poder era usado para encobrir os atos de corrupção”, pontua Livianu
O enraizamento da corrupção no Brasil não é apenas sistêmico, é histórico. Desde o início, durante a Monarquia, quando Dom João VI fugiu de Napoleão Bonaparte com toda a riqueza portuguesa para cá, ele veio despreparado assumindo o reino de uma rainha afastada do trono por insanidade e herdando a responsabilidade do irmão mais velho morto por varíola. Era rei de Portugal e do Brasil. A corrupção viria junto e 48 anos depois com o nosso primeiro Ministro ao que equivale hoje a Ministro da Justiça. Ele era corrupto. Ele foi condenado por desviar dinheiro da construção de obras em Portugal, e proibido de exercer qualquer cargo público, mas foi enviado ao Brasil e se tornou Ministro. Era o primeiro ouvidor-geral do Brasil, Pero Borges, que começou seu governo na Bahia em 1548, um ano depois de ter sido condenado por desviar dinheiro de uma obra no aqueduto do Alentejo. Ele teria de devolver todo o dinheiro roubado e ficar suspenso do serviço público por três anos. A promessa da Coroa era o deixar voltar à Europa como desembargador. Além disso, sua mulher recebia uma pensão de 40 mil reais mensais.”
O Instituto Não Aceito Corrupção, presidido e idealizado pelo promotor de Justiça, Roberto Livianu. Existe há quatro anos e é fruto de 20 anos de trabalho de Livianu. A primeira obra do Instituto foi 48 visões sobre a corrupção, mas agora estão preparando 14 textos sobre a corrupção na história do Brasil. É Uma obra coletiva de 14 textos, escritos por pessoas de várias áreas, como o historiador Heródoto Barbeiro, o cientista político José Alves Moisés, a professora Rita Biason que coordena a obra junto com Livianu, Júlio Marcelo de Oliveira, Ronaldo Costa Couto, historiador, um dos maiores conhecedores da corrupção na construção de Brasília. Ele dissipa alguns mitos, como o que duz que bom era o tempo dos militares quando que não havia corrupção.
“A verdade era que o Poder era usado para encobrir os atos de corrupção. Então, José Alvares Moisés, escreve sobre a corrupção na época da Ditadura Militar. Será lançada agora em outubro em parceira do Instituto com a Editora Mackienze. A nossa História está dividida em 14 períodos. Falamos o que ocorria naquele tempo do ponto de vista histórico e do ponto de vista da corrupção, esta que está presente desde o Brasil Colônia. Daí avançamos até chegar até a Lava jato”, explica Livianu.
Dedicação
“Me dedico há mais de 23 anos a este tema. Foi meu objeto de tese da USP (Universidade de São Paulo). Em 2012 culminou na Campanha Nacional pelos Danos Causados pela Corrupção, a Campanha Não aceito corrupção, que posteriormente deu nome ao instituto”, contou e revelou a importância do Instituto para a transparência brasileira.
“Somos ouvidos pelo Congresso Nacional. Elaboramos a 5208 que fala da criação do Fundo Nacional Anticorrupção. Ela fala de regulamentar acordo de leniência e outras iniciativas. O Instituto também se preocupa com educação e mobilização da sociedade. Por exemplo, mobilizamos 730 mil pessoas no abaixo-assinado contra o foro privilegiado. Fomos recebidos no Congresso Nacional e vistos como organismo influente em relação a este tema. Nos posicionamos publicamente em relação a isso. Neste momento estamos no pacto de integridade dos partidos. Estamos fazendo o trabalho de articulação para melhorar o padrão de integridade”.
Outro aspecto que Livianu considera fundamental para a constante situação brasileira é o baixo número de controladorias. “São menos de 10%. O padrão de controle quando há é totalmente distinto de quando não há controladoria. Queremos contribuir para acelerar o projeto Controla Brasil”, avaliou
Em 2016, o Instituto fez o primeiro Paper Acadêmico, o Não Aceito Corrupção no Combate a Corrução. Daí surgiu a Medida 36 do pacote Anticorrupção. “Este é o maior pacote já apresentado no mundo. É o aprimoramento da gestão municipal para prevenir a corrupção. Foi um dos dois papers premiados”, destacou.
Este ano está sendo elaborado algo mais abrangente que vai incluir além de papers acadêmicos, comunicação, tecnologia criando aplicativos e softwares, publicidade, spots de rádios, conteúdo para redes sociais para trabalhar o combate a corrupção. “Esperamos concluir este ano e lançar ano que vem”, encerrou Livianu. Acesse também: Riot Games afastar narrador após polêmica de assédio
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(Reportagem: Rafael Belo)