O Brasil vive um paradoxo doloroso. No mesmo dia em que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou que 34 mil crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos vivem em “uniões conjugais” no país – sendo 531 casos em Mato Grosso do Sul, a maioria meninas -, a Câmara dos Deputados aprovou o PDL (Projeto de Decreto Legislativo) 3/2025, apelidado por ativistas de “PDL da pedofilia”, por dificultar o acesso ao aborto legal de meninas estupradas.
A proposta, de autoria da deputada Chris Tonietto (PL-RJ), susta os efeitos da Resolução 258/2024 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), que define diretrizes para o atendimento humanizado e prioritário de vítimas de violência sexual na rede pública de saúde. Se o texto for aprovado também no Senado, o presidente Lula não poderá vetá-lo.
A resolução do Conanda garante acesso ao aborto previsto em lei e atendimento sem burocracia para meninas violentadas. Já o PDL aprovado pela Câmara impõe exigências como boletim de ocorrência e autorização judicial, o que especialistas classificam como revitimização e retrocesso.
531 meninas “em união” em Mato Grosso do Sul
Em Mato Grosso do Sul, o Censo identificou 531 crianças entre 10 e 14 anos vivendo algum tipo de união conjugal – 421 meninas e 110 meninos. O levantamento do IBGE ressalta que se trata de autodeclarações, sem comprovação legal, mas o dado revela a persistência de relações precoces e ilegais.
Pelo Código Penal Brasileiro, qualquer relação sexual com menor de 14 anos é estupro de vulnerável, independente de consentimento ou vínculo afetivo. O casamento civil com menores de 16 anos também é proibido desde 2019, sem exceções.
“Na prática, essas ‘uniões’ são crimes. Se relacionar com criança ou adolescente até os 14 anos é estupro presumido. A lei é clara. Isso não é casamento, é violência sexual. E os responsáveis legais que permitem, omitem ou acobertam devem responder por omissão, que também é crime”, afirma a advogada e ativista Janice Andrade, membra do MCria (Movimento Permanente pela Vida de Crianças e Mulheres em Mato Grosso do Sul).
Ativistas denunciam normalização da violência
Para Janice, os números divulgados pelo IBGE representam apenas a “ponta do iceberg”.
“Acredito que esses dados sejam bem maiores. Muitos desses casos são arranjos familiares, verdadeiras comercializações de meninas em troca de vantagens econômicas. São meninas de 10, 11, 12 anos sendo entregues a homens adultos, com o consentimento das famílias. Isso precisa ser tratado como o que é: estupro e exploração”, denuncia.
Ela critica ainda a falta de atuação do Ministério Público e da rede de proteção, que, segundo a advogada, “muitas vezes se omite diante de meninas grávidas que chegam aos postos de saúde”.
“Essas crianças são violentadas e engravidam. E o sistema, em vez de acolher, se cala. A maioria dos conselhos tutelares é formada por pessoas sem preparo e com visões fundamentalistas, que normalizam o crime”, reforça.
PDL: retrocesso na proteção das meninas
O Ministério das Mulheres emitiu nota oficial classificando o PDL como “um retrocesso e uma ameaça à vida de meninas estupradas”. A pasta lembra que a gestação forçada é a principal causa de evasão escolar feminina e leva à morte de uma menina por semana no Brasil.
Entre 2013 e 2023, o país registrou mais de 232 mil nascimentos de mães com até 14 anos — todas em idade inferior à do consentimento sexual. Embora a legislação já garanta o aborto legal em casos de estupro, apenas 154 meninas conseguiram realizar o procedimento em 2023.
O que dizem os dados e a lei
34.202 crianças e adolescentes (10 a 14 anos) declararam viver em união conjugal no Brasil
77% são meninas
MS tem 531 casos, sendo 421 meninas
Casamento civil com menores de 16 anos é proibido desde 2019
Relação sexual com menores de 14 anos é estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal)
–“Não é união, é crime”
A advogada Janice Andrade resume a gravidade da situação:
“Precisamos parar de chamar estupro de casamento. Precisamos punir os agressores, as famílias que permitem e os agentes públicos que se calam. Quando o Estado se omite, ele se torna cúmplice.”, finaliza.
Por Suelen Morales
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