Recusar o que somos: por uma existência coletiva

A pergunta “quem somos nós?” é uma preocupação que toma os sujeitos na modernidade. De maneira explícita ou não, faz parte do jeito como cada um vê a si mesmo e reconhece a própria identidade. No entanto, de onde surge aquilo que somos? É uma expressão simples da natureza humana, do convívio familiar ou tem ligação com formas históricas de produção de subjetividade, além de aparecer junto a modos específicos de sujeição?

O filósofo Michel Foucault nos diz que a resposta ao questionamento “quem somos nós?” deve ser vista como efeito de processos de internalização e de individualização. Tais processos inconscientes ocorrem por meio de múltiplas relações de poder que atravessam configurações familiares, territoriais, políticas, de Estado, da mídia de massa, de sociabilidades instituídas, dentre outras.

A produção de subjetividade não se separa das forças de produção capitalísticas e atua no seio dos indivíduos e na orientação das práticas sociais. Portanto, há forte conexão entre instâncias psicossociais, do desejo e do controle social porque as forças capitalísticas se valem essencialmente da modelagem da subjetividade coletiva para que aceite ou recuse determinada ordem social, certo comportamento e semióticas que viabilizem o fluxo de consumo em escala planetária.

Tais formas de subjetivação atravessadas pelo neoliberalismo não são abstratas nem ideológicas, mas concretas e se constituem diante das forças de individualização aplicadas diretamente à vida cotidiana. Produzidas com a participação das forças das mídias de massa que perpassa toda miríade das relações humanas no nível inconsciente, faz com que as relações que o homem estabelece consigo mesmo, com o outro, com o território, com a natureza ou qualquer coisa que possa ser tornada por objeto de consumo e consumação.

Na medida em que boa parte do que somos é efeito de dispositivos que fabricam a subjetividade como produto a ser consumido, como é possível recusar tais formas, simultaneamente individualizantes e totalizadoras que constituem a subjetividade contemporânea? Foucault sugere que se investigue as formas de resistência e as tentativas de dissociar essas relações como uma maneira de entender o que são as relações de poder, a maneira que se capilarizam e atuam na vida cotidiana de todos nós.

Então, como podemos recusar o que somos? Uma pista possível é ampliar formas de vida que sejam livres da individualização. Deixar de se identificar com a mera reprodução de estereotipias, de culpabilização, de sujeição e de controle, cuja finalidade é servir ao consumismo em marcha. Se o capitalismo determina enquadramentos individualizantes, resistências também são encontradas feito manifestação da vida coletiva, no exercício do bem-viver, vida fundada na dimensão do comum. Cosmovisões diferentes coabitam sem a aniquilação do outro. É o que nos diz Antônio Bispo dos Santos, Ailton Krenak ou, ainda, povos do Pantanal – cuja territorialização é devastada frequentemente por queimadas. Entretanto, moradores da APA Baía Negra, dos assentamentos, dos quilombos, ribeirinhos, dentre outros, resistem no cotidiano de seu modo de sociabilidade e de inscrição no território. Resistência atravessada por afeto, práticas comunitárias e de saberes que não são meros produtos consumíveis, mas sustentam a dimensão comum como potência de vida e encontram sua força na confluência.

Rômulo Ballestê é Professor do Curso de Psicologia da UFMS – Campus do Pantanal. Este texto está ligado à pesquisa coordenada pelo autor intitulada “Recusar o que somos: sujeição e contracolonialidade”. E-mail: [email protected]

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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