O que os antropólogos fazem com as histórias que a gente conta?

Diógenes Cariaga - Foto: divulgação
Diógenes Cariaga - Foto: divulgação

A Antropologia, como um campo disciplinar do conhecimento, se constitui, em grande parte, enquanto teoria e método, pela experiência da pesquisa de campo e da reflexão etnográfica. A etnografia, para a teoria antropológica, não se limita ao cânone moderno do “estar lá, escrever aqui”, mas se constitui pela capacidade de pesquisadores e pesquisadoras em construir, em conjunto com seus e suas interlocutoras, teorias nativas — isto é, pensar o mundo a partir das experiências sensíveis. A pesquisa de campo é uma das técnicas de produção de dados centrais à elaboração dos argumentos que podem sustentar um trabalho de conclusão de curso, seja de graduação ou pós-graduação, e funciona como um laboratório de experimentações simétricas, muitas vezes subvertendo posições como sujeito/objeto, objetividade/subjetividade, para poder tecer críticas a proposições científicas pautadas por discursos de neutralidade e imparcialidade.

Levar a sério essa dimensão laboratorial da etnografia é se engajar nos questionamentos que nascem no campo, vindos das pessoas com as quais nos relacionamos na pesquisa — como, por exemplo, quando fui interpelado, durante uma conversa, por um amigo kaiowá com o questionamento: “O que os antropólogos fazem com as histórias que a gente conta?”. A pergunta surgiu da curiosidade dele em compreender os motivos das perguntas que eu dirigia a ele e a outras pessoas no período em que convivi com seus familiares na terra indígena. No momento, não pude oferecer uma resposta à altura e me limitei a dizer que as reflexões ditas por eles faziam parte do conhecimento científico da Antropologia e que, para nós, antropólogos e antropólogas, as narrativas míticas e cosmológicas têm o mesmo estatuto de conhecimentos científicos, assim como aquilo que estudamos nos livros da universidade.

Ao passar dos anos, e ao retomar minhas pesquisas junto às famílias kaiowá na região do Rio Dourados, tenho pensado sobre as formas pelas quais podemos contribuir par a construção de paradigmas capazes de recriar a ciência a partir de outras ontologias, somando-nos ao esforço anunciado por pesquisadoras e pesquisadores indígenas de “indigenizar as ciências” — recriar teorias, métodos e técnicas de pesquisa a partir da composição e coexistência de outras epistemologias. A aposta que temos feito nos programas de pós-graduação em Antropologia em Mato Grosso do Sul é investir em formas colaborativas de pesquisa e na escrita de dissertações e teses que articulem os conhecimentos indígenas e os saberes acessados na trajetória de formação acadêmica, de modo que possam construir projetos de futuro a partir dos saberes tradicionais.

O desafio posto nesse tipo de proposição não é transformar os conhecimentos indígenas em currículos escolares, mas dirigir-se mais à tentativa de afetar o modelo canônico de produção científica, baseado em tempos e métricas opostos aos modos como os conhecimentos são produzidos e transmitidos — criando cursos de graduação e pós-graduação interculturais e levando os debates sobre epistemologias indígenas para o aprendizado de estudantes não indígenas. Voltando à provocação de meu amigo kaiowá, as histórias que ele e sua família me contaram têm sido um campo de inspiração profunda para seguir fazendo da Antropologia um modo de alianças políticas e afetivas, como ensinou Ailton Krenak, em que a alteridade não é lida como divisor, mas como estratégia de assegurar que a ciência inspirada nos conhecimentos indígenas busque a construção coletiva — desestabilizando divisores que constituíram uma racionalidade moderna que tem nos levado a habitar um mundo cada vez mais em risco.

Diógenes Cariaga é docente da UEMS-CG e do PPGANT-UFGD, doutor em Antropologia Social (UFSC), pesquisador vinculado ao Mundéu – Laboratório de Antropologia, Etnografia e suas Variações. E-mail: [email protected]

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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