Praticamente todas as Ciências Humanas, especialmente a Geografia, nos ensinam que não devemos limitar as análises sobre um fenômeno, processo histórico ou evento geográfico às suas formas e aparências. Precisamos ir além e identificar seus conteúdos e contextos. Isso é fundamental para não termos uma visão ingênua, seja de encanto ou de assombro, sobre as transformações contemporâneas e suas formas modernas. Evita-se assim que elas se revelem a nós como soluções mágicas para os problemas mais gerais e profundos ou como tragédias absolutas e catastróficas, como se as engrenagens e circuitos dessas formas carregassem, em si mesmos, os destinos de um futuro melhor ou pior.
A partir desse entendimento é que devemos encarar a “transição energética”, que tão velozmente difunde uma nova paisagem técnica em nossa cidades, com telhados cheios de painéis solares; nos campos, com enormes “fazendas” fotovoltaicas ou eólicas; ou mesmo mares e lagos, cobertos por equipamentos dessa natureza. Precisamos entender os discursos e manifestações concretas da transição energética a partir das lentes das Ciências Humanas e Sociais. Não só porque têm efeitos sobre as sociedades, o meio ambiente e suas interações, mas sobretudo porque são as relações sociais, políticas e econômicas que provocam e guiam seus movimentos.
Cada país e território dá seus próprios contornos à transição energética, de acordo com os meios técnicos e políticos que cada um dispõe para orientar esse processo. No caso brasileiro, observamos uma acelerada difusão de equipamentos e empreendimentos de geração renovável e de baixo carbono, especialmente solar e eólica. Todavia, isso tem sido acompanhado por uma série de irracionalidades e contradições, como: situações de desperdício ou risco sistêmico pelo excesso de energia em relação às estruturas de transmissão; aumento de conflitos em razão de novos mecanismos de apropriação da terra; intensificação da importação de equipamentos e ação de empresas estrangeiras em detrimento da produção nacional etc.
O que esse quadro nos mostra é que, ao invés de uma oportunidade para potencializar uma nova matriz de desenvolvimento territorial e justiça social, a transição energética que temos colocado em marcha no Brasil parece priorizar a renovação das desigualdades socioespaciais, da dependência econômica, do silenciamento de movimentos sociais e da priorização dos interesses privados em detrimento do público. Isso nos impõe o desafio de propor projetos de transição energética mais autênticos, integrados e coerentes com as estruturas e demandas do território, popularmente justos e soberanos, planejados nacionalmente e adequados pela e para as realidades locais.
A intenção desse texto não é fazer a recusa da transição energética. Muito pelo contrário, a urgência climática nos provoca a repensar nossa relação com o mundo energético. Porém, longe de ser uma questão exclusivamente técnica, ela também é política. Por isso, precisa ser de interesse e envolver toda sorte de cientistas sociais, historiadores, geógrafos etc. Além de contribuir com o planejamento e elaboração de políticas para essa transição energética, eles são igualmente capazes de reconhecer, agregar e propor modos alternativos de mobilizar e interagir com a energia. Difundir novas formas de captura, geração e usos da energia é fundamental para evitar ou ao menos minorar o colapso climático, porém, isso só será efetivo se formos capazes de moldá-las, contextualizá-las e darmos a elas os conteúdos sociais e políticos que apontem para um futuro mais justo e melhor.
Luciano Duarte é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia da UFGD
E-mail: [email protected]
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.
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