Artigo: ‘Menos sabedoria e intelectualidade! O que importa é a tecnologia’

Victor Garcia Miranda
Foto: Arquivo Pessoal

Essas duas frases do título podem repentinamente surgir em conversas do dia a dia, entre pessoas comuns. Pior do que isso, algo similar a elas já esteve na boca de antigas lideranças locais, ao afirmarem “não ser mais necessário professor hoje em dia, pois basta fazer busca no Google”. Demonstrações de inépcia e anti-intelectualismo tais como vistas naquelas duas frases são componentes do germe do negacionismo científico contemporâneo. Ancoram-se na falsa oposição “conhecimento vs. tecnologia” e no culto à tecnologia por si.

Ambas opiniões são derivadas da incapacidade de entender que não existe tecnologia sem o ciclo complementar das ciências básicas (a prática intelectual mais abstrata e distante da aplicação, ou a produção teórica mais presa à comunidade acadêmica) às ciências aplicadas (a última etapa da produção do conhecimento acadêmico, o lócus gerador das novas tecnologias).

Sem um desses dois elos, não há produção de tecnologias. E sem os elos entre as filosofias, as ciências humanas e os demais campos científicos, “idem”. Quem acha que tecnologia de buscadores de internet existiriam sem as perguntas de pesquisa levantadas por pesquisadores das áreas de linguística, psicologia e a sociologia dos anos 1910 e 1920 não sabe absolutamente nada sobre como se dá a geração dessa tecnologia. A tentativa de Charles Peirce (1839-1914) de identificar “keywords” para resumir e representar a consciência-ação de indivíduos foi um momento intransponível da história do desenvolvimento de algoritmos de reconhecimento de texto. De buscadores Google ao ChatGPT.

Da mesma maneira, o desenvolvimento de tecnologias de compartilhamento de dados em mídias sociais e plataformas seria impossível (repetindo: impossível) sem que houvessem os problemas de pesquisa e (também) as aplicações produzidas por clássicos filosóficos e sociológicos que antecederam em muito a Mark Zuckerberg ou a Elon Musk. Os pais das primeiras teorizações sistemáticas sobre as relações sociais, Georg Simmel (1858-1918) e Ferdinand Tönnies (1855- 1936), e do interacionismo simbólico, Georg H. Mead (1863-1931) e Herbert Blumer (1900-1987), foram fundamentais para se entender como contatos entre famílias, pessoas em conversações ou conexões entre empresas formam padrões descritivos (e que esses padrões podem ser usados para repassar mais e mais informação).

O mesmo pode se dizer a respeito do conceito de “redes sociais” em si: o desenvolvimento mais avançado e criativo (que culminou em um salto em sua co-área na ciência da computação, a “teoria dos grafos”) foi realizado por um sociólogo que combinou matemática e entendimento sensível de estruturas sociais, Mark Granovetter (1943-).

Além do produto tecnológico não poder ser criado, outro ponto de destaque diz respeito ao seu uso e operacionalização. Por exemplo: produtos de Inteligência Artificial autônoma de última geração, modelados por técnicas “reinforcement learning” não passam de amontoados de equações probabilísticas que, ao fim e ao cabo, só ganham efetividade quando operadas (ao menos minimamente) por sujeitos portadores de consciência intuitiva por trás. Sem os professores e seus estoques de conhecimento acumulados na universidade, de nada adianta um buscador de internet nas mãos de quem não possui perguntas relevantes.

As empresas de tecnologia são os entes privados mais valiosos e poderosos não só do mundo contemporâneo, mas de toda a história. E não haveria nenhuma de suas tecnologias sem que houvesse a geração ou desenvolvimento de áreas de ciências básicas, humanidades e filosofias antecedendo a elas, ou mãos e consciências de seres humanos operando-as sensivelmente.

Por Victor Garcia Miranda, professor da FACH/UFMS. Doutor em história (UFGD). Tem pós-doutorado em Ciência Política (UFPR). Foi pesquisador visitante em ciência social computacional no GESIS Leibniz-Institut für Sozialwissenschaften Köln e no SCRIPTS Freie Universität. 

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