Valsa em Lugares Esquecidos: projeto leva arte a presídios femininos de CG

Arte reflexiva A montagem de Tauanne Gazoso levou acalento às reeducandas - Foto: Allan Gabriel
Arte reflexiva A montagem de Tauanne Gazoso levou acalento às reeducandas - Foto: Allan Gabriel

Projeto leva “Valsa nº 6” de Nelson Rodrigues as unidades penitenciárias femininas da Capital, usando teatro para provocar diálogos, escuta e reflexão cultural

O projeto “Valsa em Lugares Esquecidos” levou o espetáculo “Valsa nº 6”, de Nelson Rodrigues, para além dos muros amarelos e pretos que ocupam uma quadra do bairro Coronel Antonino, em Campo Grande. Entre os dias 20 e 27 de outubro, o teatro rompeu o confinamento e encontrou espaço nas penitenciárias femininas da Capital sul-mato-grossense, levando arte e reflexão a um público pouco alcançado por iniciativas culturais.

Idealizado por Tauanne Gazoso, a montagem ganhou um novo significado ao ocupar espaços marcados pelo silêncio e pela rigidez do encarceramento. As apresentações aconteceram no Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência à Albergada e no Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi, em quatro sessões que levaram a força do teatro a diferentes realidades dentro dos presídios.

O projeto é uma realização da Prefeitura de Campo Grande, por meio da Fundac (Fundação Municipal de Cultura), e conta com apoio da PNAB (Política Nacional Aldir Blanc). A iniciativa fortalece o compromisso com a democratização do acesso à arte e à cultura, levando o espetáculo a espaços onde o teatro raramente chega.

Foto: Allan Gabriel

“Quem é Sônia?”

O Jornal O Estado acompanhou, na última sexta-feira (24), uma das apresentações realizadas na Penitenciária Feminina Irmã Irma Zorzi, onde cerca de 21 reeducandas ocuparam o auditório para assistir à encenação. De uniformes laranjas e algumas com discretos traços de maquiagem, elas acompanharam o espetáculo com uma atenção quase ritual, imersas na atmosfera do teatro que rompeu o cotidiano do cárcere.

O espetáculo trouxe para dentro das celas o universo psicológico de Nelson Rodrigues. Valsa nº 6 é uma das obras mais enigmáticas do autor, centrada em Sônia, uma menina de 15 anos que, já morta, busca compreender os acontecimentos que levaram à sua morte por feminicídio. Em cena, Tauanne Gazoso inicia o monólogo sozinha, vestida de noiva, envolta pela Valsa nº 6 de Chopin, enquanto questiona: “Sônia, sempre Sônia, quem é Sônia? Um rosto me acompanha”.

Ao som de uma trilha que cresce em intensidade, o corpo da atriz traduz em gestos a tênue linha entre lucidez e delírio. Em cena, Sônia, revive memórias fragmentadas e vozes que a perseguem, tentando compreender o que a levou à ruína. O primeiro ato expõe lembranças de paixão e culpa, marcadas por um relacionamento extraconjugal e recordações da infância. No segundo, a trama revela a verdade sobre sua morte, o silêncio que a cerca e o encontro com a Pombagira, após a sua morte trêmula que dissolve de vez as fronteiras entre o real e o imaginário.

Foto: Allan Gabriel

Reeducandas

Para a reportagem, a reeducanda Stefany Kaelayne contou suas impressões após assistir ao espetáculo ao lado da parceira de cela.Animada, ela destacou o desejo de que mais iniciativas como essa chegassem ao presídio.

“Eu gostei muito. Não é comum termos oportunidades como essa, de receber um teatro como este. Se tiver mais oportunidades de ver uma peça tão linda e maravilhosa, estaremos aqui. Estão todos de parabéns. A gente se identifica muito, eu me vi muito na parte do punhal , pois já aconteceu comigo”, completa.

A reeducanda Gabrielle Alexandra também compartilhou suas impressões sobre o espetáculo. Ela contou que foi sua primeira experiência com teatro fora de atividades internas e demonstrou interesse em continuar assistindo a peças.

“Me identifiquei com a trama, marcada por tragédias e violência contra mulheres. No início, pensei que ela estava louca, mas depois percebi que sempre é importante procurar ajuda. Para mim, a iniciativa reforça o valor da cultura e das artes dentro do presídio. O teatro abre a mente das meninas, ajuda a refletir sobre relacionamentos, violência e a importância de buscar apoio”.

Foto: Allan Gabriel

Sobre a Valsa

Para o Jornal O Estado, a atriz Tauanne Gazoso falou sobre a circulação do espetáculo Valsa nº 6 nos presídios femininos de Campo Grande, destacando a recepção das reeducandas e também suas interpretações subjetivas sobre a peça.

“Fomos sempre muito bem recebidos. Elas demonstraram grande interesse pelo teatro, algumas nunca haviam tido contato com a arte ao longo da vida.Para mim, essa experiência está sendo muito importante. Esse contato com elas também me faz repensar meu trabalho, no sentido de circular com a peça em lugares onde as pessoas mais necessitam do teatro”, destaca.

Tauanne destacou a concepção cênica da peça, a aparição da Pombagira no final do espetáculo. Segundo ela, as reeducandas captaram o simbolismo da figura como uma libertação do espírito de Sônia, sem que fosse necessário explicá-lo, o que demonstrou uma compreensão profunda da narrativa.

“Essa peça não é linear, as lembranças da personagem são fragmentadas, mas percebi que elas compreenderam todo o enredo. Eu mais ouvi do que falei, porque senti que elas queriam se expressar. Sinto que a peça está se transformando ao longo do tempo e me transformando também”, finaliza.

A última apresentação do projeto ocorreu ontem (27), segunda-feira, no Estabelecimento Penal Irmã Irma Zorzi. Com dois atos de 25 minutos cada, ao todo, a peça contou com a participação de 80 reeducandas até o fechamento desta reportagem. Para mais informações sobre o projeto, acompanhe pelo Instagram @valsaemmovimento.

Outros projetos

O Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi é referência em receber projetos culturais e oferecer oportunidades de capacitação para as detentas. O presídio conta com uma ala destinada a atividades laborais, incluindo fábrica de gelo, descasque de alho, dois salões de beleza, oficinas de artesanato com bordado, amigurumis e costura, além de um pet shop.

Além das atividades práticas, o estabelecimento penal oferece cursos de dança e decupagem promovidos pela Secretaria de Cultura e já sediou mostras de cinema voltadas aos direitos humanos. O psicólogo da penitenciária, Alex Fabiano Silva, destacou que as atividades culturais desempenham um papel importante ao aproximar as internas da arte e da informação, estimular a reflexão sobre aspectos sociais e promover mudanças no comportamento e na forma de lidar com impulsos e frustrações.

“Elas demonstram apreço pelas atividades e que isso tem ajudado na adaptação dentro da unidade penal. Muitas estão tendo o primeiro contato com o teatro e outras manifestações culturais, e eu acredito que essas experiências têm o potencial de transformar positivamente a vida delas a longo prazo, mesmo que o efeito completo apareça gradualmente”, finaliza.

 

Amanda Ferreira

 

Confira as redes sociais do Estado Online no Facebook Instagram

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *