O ilusionista da sétima arte

Filipe Gonçalves

Almodóvar é um dos poucos diretores em todo mundo que parece ser uma espécie de mágico, e um dos bons.Em seu mais novo filme “Dor e Glória- 2019”, ele conta história de um diretor e roteirista que não está muito contente com o que vinha produzindo, embora não deixa isso bem claro. Essa abordagem talvez de uma voz interior que sinta vontade de expor pensamentos há muito tempo escondidos ou debaixo de tudo que teve suportar do mundo sem sequer usar para ter pena de si.

Salvador Mallo é uma verdadeira incógnita, desde seus projetos mais ousados ele tenta de alguma forma deixar a marca de seu trabalho. Podemos especular se isso é o que move ele, mas a personificação de Antonio Banderas deixa claro que por mais que não seja o foco tem um pouco de interesse nesse sentido também. O que gera esse desconforto em nosso mágico é própria história e as diversas formas em que podemos embrulhar e encaixotar cada parte e colocar nos lugares certos na prateleira. Nada disso o define, nada disso carrega a verdadeira essência. Tudo é parte do ciclo natural da vida, a escolha de como contar é das mais variadas, logo esse é o dilema do autor. Um bom texto pode virar um Roteiro ? esse roteiro vale a pena ser rodado ?

Depois que nosso protagonista escolhe a carreira que vai se dedicar ao longo de sua vida é bem óbvio que chegue ao limiar entre criar boas produções e estagnar.O limbo entre estar em ascensão e estar anos sem produzir nada é a decadência, fator que estimula a vida das pessoas e também nos leva para uma progressão de nosso personagem que parece bem confortável na situação que está, o que temos na verdade é ‘ O processo’. Suas dores físicas e mentais são o que impede de concluir suas metas.O uso de drogas lícitas e ilícitas são parte da construção de seu personagem para essa narrativa. Afinal estamos falando de alguém que trabalha com todo material que for necessário, a experiência na construção também é importante se não nunca veríamos. Se pudéssemos entrar em uma espécie de hipercubo onde passado, presente e futuro fosse uma coisa só. E nesse momento nos fosse dada uma caneta e um maço de papel para redigirmos nossa jornada nesta terra, como você arquitetaria seu protagonismo? A medida em que vai escrevendo sua história você tem tempo para revisar o que torna o pensamento puro um pouco obsoleto, isso gera enaltecimento pela figura imagética que realiza seus comandos. O cru o que você é, e aquela pessoa que titubeia e tropeça nas palavras fica cada vez mais obsoleta conforme os dias passam, você está preso na ideia de sua representação. Almodóvar pode sugerir que uma quebra para isso é se permitir a uma nova experiência, mesmo aquelas que são tida como improvável ou que você as julga loucura.

Nossa voz por aqueles que cativas: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Um trecho do livro “O pequeno príncipe”, nos mostra que quando desempenhamos qualquer tipo de ofício ou até mesmo a nossa personalidade nos precede, temos responsabilidades sobre nossas obras e o legado que construímos.Como um mágico Almodóvar planeja bem como encantar sem aquele papo de o primeiro tocado pelo que faço sou eu mesmo. Em sua carreira com filmes muito particulares ele tem demonstrado que a posição do público importa na elaboração de como essas histórias vão para o papel e para as telas.Veja bem as histórias não sofrem com o mal do século de se tornar peças artificiais para encantar os olhos e prezar pelo espetáculo de ouvir barulhos alienígenas ou um designer de som primoroso, ou efeitos especiais que trazem de volta grande artistas,ou monstros impensáveis e sequências de luta de tirar o fôlego. O diretor preza pela curadoria e boa montagem dessas ideias.Podemos observar isso em fotografias mais simplistas deixando evidente cores vibrantes, planos de câmera com pouco movimento e uma trilha sonora muito cirúrgica. O desejo tem um toque todo charmoso também, o protagonista é uma pessoa muito centrada no que acredita e consciente do que vive e muito sincera em sua vida, o que deixa tudo muito mais palpável. Ajudar alguém a aprender a ler sem esperar nada em troca é a mais pura e bonita forma de representar nossos amores. Esse filme se resumido há uma palavra é o “Amor” , amor naquilo que fazemos, nas pessoas que temos em nossa vidas, as que perdemos e ao nosso trabalho, e claro amor por nós mesmo.A magia desse olhar vem da forma despretensiosa de ir enrolando o espectador em um novelo de ideias e emoções sem deixar de lado a surpresa de pensarmos: Isso poderia virar um filme ! e no momento seguinte temos a mágica revelada.

Cinéfilo,Podcaster, colaborador da TV O Estado e autor da coluna “Quentinhas do Cinema”

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