Com quase 20 anos de apresentações, peça reestreia em Campo Grande neste fim de semana
“Meu avô ainda não estava morando na árvore”. É assim que começa o poema ‘Concerto a céu aberto para solos de aves’ do livro ‘Caderno de Apontamentos’ do célebre Manoel de Barros. São as palavras da obra que inspiram a peça ‘Manual de Barro II – Concerto a Céu Aberto para Solos de Objeto’, realizado pela Companhia Arte Riso de Animação, com apresentações nos dias 22 e 23 de fevereiro, no Centro Cultural José Octávio Guizzo.
A peça é encenada sem palavras, colocando toda a narrativa a serviço da cena. Essa é a segunda montagem do espetáculo desde sua criação, em 2006, e já passou por diversos estados do país, sendo inclusive assistida pelo próprio Manoel em vida. Dirigida e estrelada por Marcos Moura, ela já foi selecionada em 1º lugar para integrar a 1ª edição do ‘Prêmio Ipê de Teatro’, da Sectur (Secretaria Municipal de Cultura e Turismo).
O grande diferencial e destaque da montagem é a utilização da técnica japonesa ‘bunraku’, que combina elementos de música, narração e manipulação de bonecos, feitos de madeira, pintados a mão e podem medir entre 1 a 2 metros de altura; cada boneco possui um sistema de fios ligados a ‘chaves’ de comando, que permitem controlas seus membros e expressões faciais. A movimentação do boneco é realizada por vários atores, que ficam atrás de um balcão, vestidos com roupas pretas sobre um fundo preto, dando a peça a magia que é inerente ao ator animador.
A imagem que a peça proporciona é a experiência do espelhamento e da reversão, como se as retinas da plateia fossem desdobradas e saíssem de suas próprias órbitas para pousar no avesso da cena vista.
“Tomei um banho da minha infância”
Essa é o espetáculo ‘número II’ da Companhia, que já havia desenvolvido o ‘Manual de Barro I – Sem palavras’, em 2006, contado da perspectiva do avô, assistida pelo próprio poeta. “Ele assistiu e ao final, emocionado pelo que tinha visto, falou ‘Tomei um banho da minha infância’. Isso para mim foi como ganhar um canudo da faculdade, foi uma declaração”, relembra o ator, diretor e produtor do espetáculo, Marcos Moura, ao jornal O Estado.
Após alguns anos, o diretor estruturou a ‘continuação’ da peça, dessa vez pela visão da criança do poema, para proporcionar uma nova perspectiva. “Estamos voltando para a nossa casa, o qual é o teatro Aracy Balabanian. A peça é feira para o teatro, uma caixa preta, com formas animadas que trabalham várias linguagens como a máscara, o boneco, os objetos, os efeitos de luz e som, sem utilizar palavras. É um espetáculo onde se encontrara reentrâncias de Manoel nas imagens”, explica. A direção musical do espetáculo fica por conta do multi-instrumentalista Antônio Porto, que produziu uma composição específica para a peça.
“Eu já vi pessoas chorando e emocionadas pelo que viram. Crianças que, sem ouvir uma palavra, entendem todo o espetáculo. Isso é muito fascinante, o quanto prende a atenção, quando você casa todas as coisas, a imagem, a música, os efeitos, a luz negra”, destacou.
Retorno
Fundada pelo ator e diretor Marcos Moura, a Cia Arte Riso de Animação teve usa origem em São Paulo, com seu primeiro espetáculo, ‘De palhaço e louco todo mundo tem um pouco’. Em 1999 se transfere para Mato Grosso do Sul onde participou dos principais festivais do estado. Após o sucesso de ‘Manual de Barro I’, Moura acredita que o novo espetáculo também terá uma longa trajetória, com apresentações em outras regiões, inclusive fora do Estado.
“Queremos oferecer esse trabalho tão lindo para homenagear um poeta que não pode ser esquecido. Manoel de Barros é um dos maiores símbolos culturais de Mato Grosso do Sul. Precisamos valorizá-lo e exaltá-lo sempre que possível”, declara.
Além de Moura, a animação e atuação também são de Stepheen Bayllon, que traz a peça seu conhecimento sobre iluminação.
A peça
A vida de um avô, a beira da morte, que por meio de uma árvore nascida no meio da sala, empreende uma jornada até o céu, junto ao seu gramofone, tudo na visão do neto. Conforme Moura, o espetáculo traz ao público a relação entre neto e avô, presentes no texto ‘Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave’.
“É a sinfonia de um mesmo tema mostrado pela visão da criança que vê e transvê o mundo poeticamente, encetando uma viagem de pura liberdade, que pelo devaneio e onirismo, permite vivenciar a relação entre avô e neto, mostrando que a morte deixa de ser uma perda, para ser assumida como a realização poética de um desejo de transfiguração, a partir do legado deixado: um caderno de apontamentos”.
Técnica Milenar
A técnica japonesa Bunraku, tem um aprendizado longo e rigoroso, onde um manipulador pode levar até 15 anos para alcançar o nível de operar a cabeça do boneco. No Brasil, a companhia fez uma adaptação da técnica para torna-lá mais acessível.
“É um trabalho altamente técnico. Há uma grande diferença entre simplesmente movimentar um boneco e, de fato, dar vida a ele. Essa vida vem da energia do ator, que se transfere para o objeto, e é essa interpretação que chega ao público. Há um distanciamento fundamental entre o ator e o boneco: o ator não é o personagem, ele o manipula. Essa energia transmitida ao objeto cria no espectador a ilusão de vida, um efeito quase mágico que prende sua atenção”, explica Moura.
“No teatro de bonecos, menos é mais. O olhar é um elemento essencial: toda ação precisa ter um objetivo claro. Quando o olhar do boneco se direciona ao público, cria-se uma conexão, uma comunicação direta, e o espectador sente que o boneco está olhando para ele, e isso gera um efeito fascinante. O grande encanto do teatro de bonecos está exatamente nisso: dar sentido e vida ao personagem de tal forma que ele consiga surpreender o público”.
Estímulo
Na era digital, o teatro nem sempre é a primeira escolha do público, que muitas vezes se prende as telas, em busca de conteúdos com grandes efeitos. Segundo Moura, esse é o desafio do teatro, prender a atenção do público e fazer com que as pessoas se interessem em ir ao teatro.
“Prender a atenção do público por cerca de 45 minutos é fascinante e, mais do que isso, necessário. Hoje, com o ritmo acelerado da tecnologia, o teatro de bonecos trabalha diretamente com o inconsciente, permitindo que cada espectador crie sua própria história a partir do que vê no palco. Essa construção é influenciada por sua cultura e seus conhecimentos prévios”, disse.
Ele revela que certos aspectos do teatro de bonecos poderão parecer para o público como efeitos tecnológicos, o que surpreende ainda mais.
“Acreditamos que esse espetáculo proporciona um resgate da humanização em meio à digitalização excessiva. O teatro tem esse papel: humanizar, estimular o pensamento crítico e levar o público a refletir sobre o que consome. Mais do que entreter, ele oferece uma experiência que pode transformar e trazer novas concepções filosóficas para a vida”.
O diretor e ator ainda finaliza exaltando a grande inspiração para seu trabalho. “Ele conseguiu fazer com as palavras o que poucos conseguiram. A poesia de Manoel de Barros é nossa grande inspiração, e esperamos que o público se encante ao ver tudo isso ganhar vida no palco. Quando ele assistiu à primeira apresentação, adorou. Se estivesse vivo, acredito que gostaria tanto quanto gostou daquela primeira vez”.
Serviço: A peça ‘MANUAL DE BARRO II – Concerto a Céu Aberto Para Solos de Objeto’ será apresentada nos dias 22 e 23 de fevereiro, às 16h e 19h, respectivamente, no Centro Cultural José Octávio Guizzo. Ingressos podem ser adquiridos na plataforma Sympla https://www.sympla.com.br/evento/manual-de-barro-ii-concerto-a-ceu-aberto-para-solos-de-objeto/2822153.
Por Carolina Rampi