Artistas sul-mato-grossenses refletem sobre a divisão com Mato Grosso e a construção de uma identidade cultural própria
Quase meio século após a separação de Mato Grosso, o Mato Grosso do Sul segue descobrindo a si mesmo. Criado oficialmente em 1977, o Estado mais jovem do Centro-Oeste brasileiro ainda constrói, passo a passo, uma identidade cultural própria, marcada pela diversidade de povos, influências e paisagens. Nesse processo, a arte tem sido uma das principais formas de reconhecimento e pertencimento.
Três artistas de trajetórias distintas, a cineasta Marineti Pinheiro, a atriz e diretora Lígia Tristão e o cantor e compositor Geraldo Espíndola, ajudam a traçar, a partir de suas experiências, um retrato sensível dessa construção coletiva. Entre a memória e o futuro, suas falas revelam um território que ainda se entende como múltiplo, mas que, aos poucos, vai encontrando um lugar de fala próprio no mapa cultural do Brasil.
O cinema e o olhar para o próprio quintal
A cineasta Marineti Pinheiro, que tem formação e experiência internacional no audiovisual, vê o Mato Grosso do Sul como um território ainda em processo de ser filmado, no sentido mais profundo do termo. “Eu me recordo de um comentário de um professor francês, que dizia que a Europa começou a filmar os países da América Latina muito antes que a própria América Latina o fizesse. Ou seja, havia uma América Latina inteira por ser descoberta através do cinema”, recorda.
Para ela, o mesmo vale para o Mato Grosso do Sul, um estado “ainda por ser filmado”. “É um estado criado recentemente, com apenas 48 anos. Grande parte das pessoas que aqui estão vieram de outros lugares. Só quem está perto de completar 50 anos nasceu, de fato, em Mato Grosso do Sul. Eu sou uma dessas pessoas, sul-mato-grossense de nascimento”, afirma.
Marineti destaca que, antes da divisão e das fronteiras, já existia uma riqueza ancestral profunda. “Temos povos originários que estavam aqui muito antes das divisões geopolíticas, inclusive antes dos países Brasil e Paraguai existirem. Aqui havia uma grande nação guarani. Essa diversidade de comunidades indígenas e essa influência paraguaia e boliviana formam uma cultura única”, explica.
Para a cineasta, o audiovisual tem um papel essencial nesse reconhecimento. “O filme ‘Delinha, a Dama do Rasqueado’, e o ‘Ao Som do Chamamé’, com o Lucas Barros, neto de Manoel de Barros, são exemplos dessa singularidade. Quando o Lucas levou o filme ao Rio de Janeiro, o público ficou encantado com o chamamé, um gênero até então desconhecido por muitos. Esse tipo de reação mostra o potencial do estado em sua especificidade cultural. A chipa, a sopa paraguaia, a polca, o guarani, tudo isso está aqui, tão próximo de nós, e muitas vezes não percebemos o quanto é extraordinário até que alguém de fora o veja”.
O reconhecimento da diversidade e o olhar atento para o que é próprio do território são, para Marineti, os caminhos para uma identidade cinematográfica sul-mato-grossense. “Existe uma frase que gosto muito: é preciso aprender a olhar para o próprio quintal para conseguir ver o mundo. Quando contamos nossas histórias, despertamos empatia — e isso nos conecta a outros lugares. Cada estado do Brasil tem a sua Delinha, mas a nossa é única, e é por meio dela que mostramos quem somos”.
Sobre os aspectos estéticos, ela acrescenta: “Temos três biomas — Cerrado, Mata Atlântica e Pantanal —, uma imensidão de paisagens que influenciam nosso modo de filmar. Filmes como Madalena mostraram o agro e a monocultura de um jeito que ainda não havia sido representado nas telas. A paisagem aqui é quase um personagem. A diversidade é tamanha que torna difícil definir o que é ‘ser sul-mato-grossense’. Somos um mosaico: influências indígenas, paraguaias, bolivianas, japonesas. O sobá e a sopa paraguaia coexistem no mesmo prato, e é dessa mistura que nasce nossa força cultural”, finaliza.
A arte como raiz e descoberta
A atriz, produtora e diretora Lígia Tristão reflete sobre o impacto da divisão e sobre o papel da arte na construção do sentimento de pertencimento, especialmente entre crianças e jovens. “Acho o MS um estado múltiplo e possível. Por ser muito novo, acredito que estamos vivendo a construção de uma cultura farta, mas ainda precisamos enxergar quem estava aqui antes de nós. Existe uma história e uma cultura que já estavam presentes nesse território. É preciso conhecer geograficamente, culturalmente e historicamente a região que fazemos parte.”
Para Lígia, o momento atual é de descoberta e construção. “Estamos no começo de um caminho possível para colocar luz sobre o nosso território e fazer com que essa cultura seja mundialmente conhecida. Isso não acontece da noite pro dia, é preciso tempo e construção para ultrapassar fronteiras. Como dizemos no nosso espetáculo, ‘todo o mundo devia conhecer o Pantanal’.”
A diretora também fala sobre o aprendizado de criar um espetáculo tão profundamente ligado à natureza e à identidade local. “Dirigir um trabalho conectado à cultura regional me fez entender o quanto o nosso território é imenso, lindo e rico, com muita história pra contar — e que ainda é só o começo. Temos vontade de mergulhar mais fundo nas possibilidades culturais da nossa história. É preciso, enquanto artista sul-mato-grossense, mergulhar fundo no nosso território, se enriquecer de conhecimento e pertencimento para conseguirmos ir pro mundo.”
Entre memória e pertencimento
Nascido em 1952, o cantor e compositor Geraldo Espíndola viveu a divisão de 1977 de perto. Sua relação com o território é afetiva e profunda. “Eu sou nascido e criado aqui em Campo Grande, cidade que tenho no coração. Toda a minha família foi constituída aqui. Eu estudei aqui, batalhei pela música desde 1968. Campo Grande tem uma importância fundamental porque vejo meus filhos e netos crescendo nesse mesmo chão”.
Para ele, o momento da divisão marcou também um recomeço. “Apesar de ter nascido antes da separação, ela me marcou profundamente. Eu me casei na época da divisão e já são 48 anos de casado. Continuamos juntos na arte, fazendo arte mesmo. Eu gosto muito do meu Estado, conheço todos os municípios, tenho verdadeira paixão por este lugar”.
Geraldo fala com emoção sobre o que considera essencial para o futuro do MS: o equilíbrio entre desenvolvimento e preservação. “Luto o tempo inteiro para que se conserve um desenvolvimento sustentável aqui nessa terra. Precisamos preservar o Pantanal. Já passou da hora de ele ser tratado como uma reserva nacional, uma prioridade do país”.
Para o cantor, o sentimento de pertencimento é o que move a cultura sul-mato-grossense. “A gente tem que manifestar o nosso querer como povo, como povo brasileiro e como povo sul-mato-grossense. Essa terra é nossa casa. A música, a arte, a cultura — tudo isso é a nossa forma de dizer que estamos aqui e queremos cuidar desse lugar”.
Por Carolina Rampi e Amanda Ferreira
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