A um ano de completar seis décadas de criação, a Terra Indígena do Xingu, implantada no coração do Brasil, enfrenta os riscos provocados pela chegada da pandemia de Covid-19.
Os prognósticos indicam uma “situação explosiva” em decorrência da fragilidade dos índios diante de novas doenças, da carência do sistema de saúde e também do próprio modo de vida tradicional, com compartilhamento constante de casas e refeições, além da facilidade de acesso dos municípios vizinhos ao interior do território demarcado. “Não chegou ainda à terra indígena, mas há um risco grande de chegar logo. Nove cidades da região têm um intercâmbio intenso com as aldeias. Há muitos indígenas vivendo nas cidades”, afirma o médico Douglas Rodrigues, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A recomendação, segundo o sanitarista, que se dedica à pesquisa e ao atendimento médico dos xinguanos desde o início dos anos 1980, é “quem está fora não entra e quem está dentro não sai”. “Os índios estão mantendo as entradas fechadas.”
Mas sua previsão é que a Covid-19 entre no Xingu. “A epidemia está chegando perto, com casos registrados em cidades vizinhas”, diz o médico. “Isso poderá provocar uma situação explosiva. Mas a maioria são casos sem maior gravidade, que uma boa equipe médica na área poderá cuidar. Os casos graves terão que ser tratados nas cidades, dependendo da capacidade do sistema de saúde.”
Outra preocupação, segundo Rodrigues, é com os agentes de saúde que atuam no Xingu.
“Eles trabalham 20 dias no campo (o Xingu) e têm 10 dias de folga. Agora, terão que fazer uma quarentena de 14 dias antes de voltar ao Xingu. Isso conta como trabalho? Onde vão fazer quarentena? Como vão ficar sós? Isso é um risco.”
Se a previsão de Rodrigues se confirmar, não será a primeira vez que o Xingu viverá uma epidemia. Desde a chegada dos europeus à América, a região onde fica aquela terra indígena já sofreu diversas epidemias, a primeira delas no final do século 16.
Vírus contraídos no litoral do país se espalharam pelo interior antes mesmo de conquistadores portugueses dominarem o centro do Brasil, provocando uma devastação chamada cataclismo biológico. Varíola, sarampo e gripe reduziram a população xinguana em quase 90%, fazendo desaparecer grandes cidades.
Os atuais xinguanos, descendentes dos sobreviventes daquele cataclismo, são cerca de 6.000 índios, cuja população vem crescendo desde os anos 1960, quando algumas etnias praticamente desapareciam. ntes do anúncio da atual epidemia de coronavírus, o Xingu já se preocupava com as ameaças representadas pelo desmatamento radical das áreas verdes em seu entorno, por mudanças climáticas e pela contaminação de suas terras e águas por agrotóxicos que são usados nas fazendas vizinhas.
Localizado no norte do Mato Grosso, o Parque do Xingu, como é mais conhecido, é lar de 16 etnias com cinco troncos linguísticos. Algumas habitam a região há quase dois milênios, outras foram incorporadas ao longo dos séculos –até mesmo pela decisão de seus fundadores, os irmãos indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas Bôas, que trouxeram para a proteção da área demarcada alguns vizinhos dizimados por invasores e doenças.
Esses grupos diversos vivem juntos em um sistema de integração cultural marcado por intenso intercâmbio de rituais e bens, que estabeleceu uma cultura xinguana.
Ao decretar sua criação, em 1961, o presidente Jânio Quadros atendeu ao clamor popular de uma campanha nacional capitaneada por dez anos pelos irmãos Villas Bôas. Foi na gestão dos Villas Bôas, primeiro em nome do Serviço de Proteção aos Índios, o extinto SPI, e depois de sua sucessora, a Funai (Fundação Nacional do Índio), que se formaram os mais tradicionais líderes xinguanos.
Ao administrar suas comunidades, esses caciques lidam ao mesmo tempo com a tradição dos ritos e do modo de vida antigos e a pressão do consumo de produtos e serviços da cultura urbana.
Uma outra preocupação é a presença de agrotóxicos nos rios e em suas terras. Os sinais de contaminação cresceram recentemente, com a aproximação ainda maior de fazendas de soja das divisas do parque.
Por habitarem áreas fronteiriças, os índios kisêdjês, da Terra Indígena Wawi, têm sido os mais afetados. Sentem cheiro de veneno no ar e nas águas, detectam mudanças no gosto dos peixes e veem animais mortos, com o estômago cheio de soja.
Por isso, eles procuraram a ajuda de parceiros e cientistas. O programa Xingu, do ISA (Instituto Socioambiental), foi acionado e contatou o biólogo Francco Antônio Lima, que fez mestrado na UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso) sobre a presença de agrotóxicos em áreas da Terra Indígena Maraiwatsede (MT).
Ele concentrou os primeiros levantamentos na área fronteiriça às fazendas de soja, onde moram os kisêdjes, para depois estudar a região dos kuikuro. Em investigação anterior, em terras dos xavante, Lima detectou sinais de uso criminoso de agrotóxicos, como galões abandonados abertos junto a poços de água.
As análises da qualidade da água foram feitas pela Unifesp, que colheu amostras de chuva, de rios com nascentes fora do parque, de córregos que nascem dentro da terra indígena, coletadas a 40 km da fazenda mais próxima, e de poços profundos implantados pelo Ministério da Saúde nos últimos anos, exatamente para evitar o consumo do líquido cada vez mais poluído.
Os resultados estavam previstos para serem entregues aos índios neste mês de abril, para só depois serem divulgados ao público. A chegada da pandemia de coronavírus à região adiou tudo.
O médico sanitarista Rodrigues, da Unifesp, também aguarda com apreensão esses resultados.
Em suas andanças pela área, ele conta ter visto muitos sinais de agrotóxicos. “Há forte impacto nos rios: os índios descrevem a presença de peixes mortos e cheiro estranho, especialmente no Tanguro, que nasce fora dos limites do parque e passa pela cidade de Querência (MT). Na beira desse rio, eu senti gosto estranho na água”, afirma.
A suspeita de que os agrotóxicos possam contaminar a terra indígena vem também do fato de que as regiões agrícolas em torno do Xingu são palco de diversos casos já documentados de contaminação sistêmica das pessoas, como narra o dossiê “Um Alerta Sobre os Impactos dos Agrotóxicos na Saúde”, publicado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pela Fiocruz, em 2015, entre outros estudos.
(Texto: Ana Beatriz Rodrigues com informações da Folha de São Paulo)