No Natal, sobrevivente da violência doméstica mostra que é possível renascer após a violência

Investigação das tentativas de feminicídio é peça-chave no enfrentamento a crimes contra a mulher em MS

 

O Natal, tempo tradicionalmente associado à esperança, ao recomeço e à reconstrução, também carrega o significado de resistência para mulheres que sobreviveram à violência de gênero. Em Mato Grosso do Sul, histórias de dor se misturam a trajetórias de superação e reforçam a urgência de políticas públicas que não olhem apenas para os casos consumados de feminicídio, mas também para as tentativas — marcas de um crime que quase se concretizou.

Dados da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública) mostram que, até 14 de dezembro de 2025, foram registradas 77 tentativas de feminicídio em Mato Grosso do Sul. O número revela que o enfrentamento à violência contra a mulher vai além das 39 mortes confirmadas por razões de gênero neste ano e exige atenção às situações em que a vítima sobreviveu, muitas vezes por circunstâncias alheias à vontade do agressor.

Agosto, mês do Agosto Lilás, lidera o ranking de ocorrências, com 13 tentativas, seguido por maio e outubro, com 10 casos cada. Para a subsecretária de Políticas Públicas para as Mulheres, Manuela Nicomedes, esses números precisam ser analisados com profundidade, pois indicam trajetórias interrompidas por pouco.
“O feminicídio só não se consumou porque algo impediu, mas a intenção do agressor era matar. Por isso, precisamos olhar para essas tentativas com a mesma gravidade”, afirma.

Segundo Manuela, a análise dos dados deve considerar se a vítima havia denunciado o agressor anteriormente e como foi sua passagem pela rede de proteção. O cruzamento de informações, como idade, situação socioeconômica, raça e escolaridade, ajuda a identificar falhas no sistema e a orientar políticas públicas mais eficazes.

“Percebemos que muitas mulheres não chegam à denúncia formal, mas manifestam sinais de violência de outras formas. Precisamos identificar onde elas estão e como podemos alcançá-las”, explica.

“Saí com a roupa do corpo e meu filho no braço”

Por trás das estatísticas, existem histórias que sobrevivem — e renascem. Uma delas é a de Roberta Trilha, de 41 anos, sobrevivente de uma tentativa de feminicídio em 2012, antes mesmo de o crime ser tipificado no Código Penal.

Após sete anos de um relacionamento marcado por controle, violência física, psicológica e patrimonial, Roberta precisou fugir com o filho pequeno nos braços. Seus pertences foram queimados pelo agressor depois da tentativa de matá-la. Ainda assim, ela sobreviveu.

“Casamos quando eu tinha 21 anos e, três anos depois do meu filho nascer, não me via mais na vida que tinha, inclusive já não queria mais estar casada. Inclusive, eu não trabalhava e quando decidi voltar ao mercado de trabalho ele não aceitou”, recorda.

Roberta detalha que a violência aconteceu em escalada, sendo que a primeira agressão física aconteceu após pedir o divórcio. Sem ter para onde ir de forma imediata, a funcionária pública continuou na mesma casa que o agressor, que durante quatro meses nutriu a esperança de um possível retorno do relacionamento, mesmo com os dois dormindo em quartos separados. No entanto, quando soube que o rompimento era definitivo, ficou cada vez mais violento.

“Depois da primeira agressão, houve uma segunda e uma terceira, em dois dias consecutivos. Eu comecei a perceber que seria perigoso continuar naquela casa. Solicitei uma medida protetiva, peguei algumas roupas e meu filho e fomos para a casa de uma amiga. Nessa ocasião fiz todo o procedimento, incluindo exame de corpo de delito”, contou.

Já morando temporariamente com a amiga, Roberta sofreu a quarta agressão, a que classifica como mais violenta e brutal. A mulher relembra que neste dia, o agressor ficou monitorando a movimentação da casa onde ela estava, esperando que a vítima ficasse sozinha para, então, invadir o local e agredi-la mais uma vez.

“Nesse dia ele me agrediu na frente do meu filho, que tinha 3 anos na época. Foi a agressão mais violenta e brutal, foi horrível. Ele pegou meu celular e levou. Lembro que tudo acabou, porque o filho dessa minha amiga, que era adolescente, chegou em casa e interviu. Depois esse menino me disse que o meu agressor tinha um facão, então, se ele não tivesse chegado talvez eu teria morrido”, relatou.

Além da violência física e da tentativa de feminicídio, a mulher ainda foi vítima de violência patrimonial, quando encontrou todos os seus pertences, incluindo roupas e sapatos, queimados. De acordo com ela, o ex-marido teria ateado fogo em suas coisas após a tentativa de matá-la, a deixando apenas com os itens que havia levado anteriormente quando saiu de casa.

Sem nada além da própria coragem, Roberta recomeçou. Mudou de cidade, alugou uma pequena kitnet e reconstruiu a vida passo a passo. Hoje, sua história simboliza o que o Natal representa para tantas mulheres: a possibilidade de seguir viva, apesar das marcas.

“Eu sei o medo que fica escondido por trás dos sorrisos e o esforço absurdo para continuar. Mas essa dor diminui com o tempo. Dentro de você existe força para ficar em pé. Quando você se liberta de um relacionamento que tentou te aniquilar, você floresce”, diz.

Em um período em que o mundo fala de luz, renascimento e esperança, histórias como a de Roberta lembram que sobreviver também é um ato de resistência — e que nenhuma mulher deve enfrentar a violência sozinha.

 

Por Ana Clara Julião

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