Apoio familiar e emocional são decisivos para atletas das categorias de base
O futebol de base, espaço que deveria representar aprendizado e alegria, tem revelado uma pressão abusiva por resultados, vinda das arquibancadas e, mais especificamente, dos pais. A experiência dessas crianças e adolescentes mostra que o incentivo familiar pode ser suporte essencial ou fardo na formação dos meninos e meninas atletas.
Pietro Crizanto, de 15 anos, é um exemplo de como o apoio influencia o rendimento dentro e fora de campo. Natural de Glória de Dourados, Pietro começou a jogar ainda criança pela ONG Gol de Letra. Neste ano, representou a escolinha PróGol, de Dourados, a 78 km do município natal. No pouco tempo de experiência pela escolinha, o camisa 10 já disputou o Campeonato Estadual Sub-15, através da parceria com o DAC (Dourados Atlético Clube). “Chegamos à semifinal, nunca pensei que iria tão longe. O que mais me marcou foi o jogo contra o Águia Negra, quando fiz dois gols na nossa vitória por 2 a 1”, lembra o atacante.
A mãe, Fabricia Crizanto, 37, é enfermeira, e o pai, Paulo Alberto, 42, trabalha como instrutor de autoescola. Mesmo com a rotina cheia e outros dois filhos, o casal busca estar presente na trajetória do primogênito. “Nem sempre conseguimos ir aos jogos, mas ele sabe que estamos com ele. Aprendemos que apoiar não é cobrar, é dar base e segurança”, afirma Fabricia.

Foto: Arquivo pessoal
Alerta após agressão
Desde pequeno, Pietro sempre gostou de esportes, a mãe afirma que tudo que interessava era “bola, chuteira e meião”. Aos 11, foi convidado a jogar pelo Azuriz, do Paraná, e passou a morar com a avó, que deixou tudo para acompanhá-lo.
A adaptação exigiu tempo. “Era tudo novo: cidade, clima, rotina de treino. No começo ele sentia falta da gente, e a gente dele. Depois se acostumou e aprendeu a se virar”, lembra a mãe. As manhãs no interior paranaense começavam cedo. “Foi um período difícil, mas o fez crescer. Voltou mais responsável e disciplinado”, conta Fabricia.
Aos 13, durante uma peneira no interior paulista, Pietro passou por um episódio marcante. Em uma noite no alojamento, foi coagido e agredido por colegas. A mãe só descobriu porque os dois haviam combinado uma palavra-código para emergências. “Nos falamos por chamada de vídeo, e quando ele disse o código, entendi na hora. Minha mãe foi até o clube e percebeu que ele estava assustado. O episódio serviu de alerta. Desde então, o diálogo virou regra. “O esporte tem que ser saudável, não motivo de medo. Ele ainda é uma criança, não um profissional.”
Pai, é um jogo de criança
O caso vivido por Pietro não é isolado. Mas, além dos próprios atletas enfrentarem situações delicadas, os pais também têm se tornado um problema recorrente nas arquibancadas, onde discussões, xingamentos e até brigas têm se tornado comuns. Fabricia diz que já presenciou essas situações em jogos das categorias de base. “Às vezes o pai esquece que é um jogo de criança. Começa a gritar, a cobrar, e o clima pesa. Quem sofre são os meninos”, diz.
Pietro conta que ele e os colegas são orientados a não reagir e se afastar quando veem alguma confusão. “A gente sai de perto para não sobrar para nós. O treinador sempre fala pra focar no jogo e deixar os adultos se resolverem”, explica.
Especialistas alertam para influência negativa
O treinador Bruno Bezerra, coordenador da Academia de Futebol do Palmeiras e da Escolinha Pelezinho, em Campo Grande, afirma que o comportamento dos adultos fora de campo influencia diretamente o desempenho das crianças.
“A maioria dos pais quer ajudar, mas às vezes atrapalha. Quando o pai grita e manda o menino fazer o contrário do que o técnico pediu, ele se confunde. Passa a jogar pra agradar, não para aprender. E quando joga com medo, não evolui”, explica.
Segundo Bruno, o trabalho na base vai além dos fundamentos. “A gente tenta formar pessoas, não só jogadores. Ensinamos respeito, disciplina, convivência. Quando a criança entende que o erro faz parte, joga mais leve e aprende mais rápido.”
Amor x resultado
A neuropsicóloga Renata Boni, especialista em infância e juventude, explica que o comportamento dos pais nas arquibancadas impacta também o desenvolvimento emocional. “Quando há gritos ou críticas, a criança não escuta só o barulho, ela sente. Sente que precisa acertar para ser aceita, que errar é perigoso, que o amor pode depender do resultado”, diz.
Renata defende a presença de psicólogos nas categorias de base. “O ideal é que o profissional faça parte do cotidiano dos treinos e oriente pais e técnicos. As crianças lidam com frustrações e preconceito. Se tiverem preparo emocional, enfrentam isso com mais equilíbrio.”
Casos de violência de ‘gente grande’ em MS
Em Mato Grosso do Sul, os últimos meses registraram episódios graves. Em agosto, um árbitro foi vítima de injúria racial durante jogo do Estadual Sub-15, por parte de um dirigente. Pouco antes, um atleta do Pantanal, que disputava o torneio de base MS Cup, deixou o campo aos prantos após ofensas racistas vindas de um segurança. Em setembro, o pai de um jogador do Sub-17 foi punido com dois anos banido dos estádios por insultos misóginos contra uma assistente de arbitragem.
“Quando uma criança é exposta a essas falas, os danos vão além do jogo. Isso atinge a identidade, gera exclusão e pode até levar ao abandono do esporte. O mais grave é quando a violência parte de adultos”, alerta a psicóloga.
Ação de Federação Paulista é elogiada
O problema é nacional. Em São Paulo, após 46 registros de brigas e ofensas em jogos de base, a FPF (Federação Paulista de Futebol) decidiu fechar os portões de 144 partidas das categorias Sub-11 e Sub-12, e proibiu a presença de torcedores.
Fabricia aprova a iniciativa. “Quem se exalta esquece que o exemplo conta mais do que o placar. Essas crianças precisam de incentivo, não de cobrança. Futebol de base é aprendizado, não guerra”, diz.
Futebol tem de ser sonho e aprendizado, diz a mãe
Hoje, Pietro divide o tempo entre treinos, viagens para campeonatos e o estudo, e mantém o foco no que o move. “Meu avô, que já faleceu, era apaixonado por futebol, e eu jogo por ele. O apoio da minha família é a base para tudo”, afirma.
A mãe acompanha cada passo com atenção. “O esporte trouxe aprendizado pra todos nós. Ele ficou mais responsável e disciplinado, e a gente aprendeu a respeitar o tempo dele”. O treinador Bruno reforça a lição. “Nem todo talento vira profissional, mas todo menino pode crescer como pessoa através do esporte. O foco deveria ser esse.”
Na casa dos Crizanto, essa ideia já é regra. “A gente quer que ele seja feliz e siga o que ama. O resto vem com o tempo”, conclui Fabricia. O futebol pode ser sonho e aprendizado, desde que o apoio da família e o respeito dos adultos continuem jogando no mesmo time.
Renata deixa uma reflexão: “Por trás da chuteira apertada e do olhar focado ainda existe uma criança. O troféu pode esperar, o colo não. O placar passa, mas a forma como ela foi tratada fica pra sempre.”
Por Mellissa Ramos