Conforme dados do MDHC (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania), foram registrados, em 2024, 2.472 denúncias de intolerância religiosa pelo Disque Direitos Humanos no Brasil. O número representa uma alta de 66% em relação ao ano anterior e os segmentos mais violados são as religiões de matriz africana como umbanda e candomblé. É para mostrar a força, vivência e resistência de uma casa de axé que a diretora Mariane Lopes lança o documentário ‘Ìlê Asè Efunsola Ajàgúnà’ na próxima sexta-feira (4), no Museu da Imagem e Som.
A produção é um curta-documentário que mergulha na vivência de uma casa de santo e reflete sobre pertencimento e resistência de religiões de matrizes africanas e povos de terreiro, mostrando o dia-a-dia de uma casa de Candomblé pelo olhar de uma filha de santo, a própria diretora, Mariane Lopes.
“O documentário surgiu a partir de um movimento cultural dentro da casa, envolvendo uma irmã de santo, a Ângela Montealvão, agente cultural pública, em Campo Grande. Como a Angela está sempre atenta a editais e trabalha com projetos nessa área, ela nos apresentou um edital chamado Sabores e Saberes, da Fundação Palmares. Foi a partir desse edital que decidi gravar um vídeo-receita, conforme a proposta, que deveria abordar comunidade, amor e as religiões de matriz africana. Mas, ao pensarmos em como e o que produzir, senti uma necessidade muito forte de também falar sobre a nossa casa de santo”, explica a diretora ao jornal O Estado.
“O curta mostra que as religiões de matriz africana são fundamentadas no amor e na evolução. Ali, dentro daquela casa, estamos no nosso caminho individual. Não estamos olhando para o outro, muito menos fazendo macumba para o outro. Estamos fazendo para nós mesmos, para a nossa evolução”, complementa.
Sentimento
Por meio de imagens delicadas e relatos reais, o filme busca ampliar a compreensão do público sobre o pertencimento histórico e tradicional juntando com a profundidade das religiões de matriz africana, reforçando o papel dos povos de terreiro na sociedade. Com a realização do documentário, Mariane relata como sentiu que a conexão com suas crenças se intensificou.
“Fez com que eu entendesse que ali estou por mim, e cada um deve estar por si. Somos um coletivo, mas quando precisamos, estamos juntos. Na verdade, não somos apenas um coletivo – somos uma família. Nos chamamos de irmãos, e, como irmãos, estamos ali para apoiar uns aos outros quando necessário”, destacou.
A diretora enfatiza como no Candomblé a ideia é a evolução individual, onde é preciso perceber os erros e assim, aprender e melhorar com eles. “É um processo constante. Hoje posso errar em um aspecto e melhorar amanhã, mas, ao mesmo tempo, posso piorar em outro. E assim seguimos, aprendendo até o último dia de nossas vidas. Isso não me faz melhor do que ninguém, apenas consciente do meu próprio caminho”.
Para ela, as gravações mostraram a família que ela construiu na casa. “Senti que tenho uma família. E, como qualquer família, ela não é perfeita. Mas o que nos une é essa tentativa constante de evolução. Isso ficou mais forte para mim. Isso me fortaleceu. E me ajudou a entender até mesmo aqueles que não se propõem a evoluir tanto quanto os outros. Quem sabe um dia?”.
Aprender e respeitar
Mariane é clara em enfatizar que sua obra é o que chama de “letramento racial”. “É um ato de letramento racial, mas o filme faz isso por meio da narrativa do amor, da família e da evolução. Perto do final, há entrevistas com meu pai de santo, onde ele fala sobre a importância de desconstruirmos, buscarmos conhecimento, entendermos as religiões de matriz africana. Porque são um legado religioso herdado da África, parte essencial da cultura afro-brasileira”, reforça
A diretora ainda pontua o fato do racismo religioso perpetuado no dia-a-dia, quando as tradições de religiões de matrizes africanas são colocadas aos olhos do público, como oferendas, roupas vocativas de orixá, por exemplo.
“Por que não conhecemos as religiões de matriz africana? Por que demonizamos? Por que não gostamos? Por que ‘fazer macumba’ é associado ao demônio? E, afinal, quem definiu o que é demoníaco? A verdade é que reproduzimos racismo religioso sem nem saber sua origem — e talvez sem querer saber”, questiona.
“E o filme busca exatamente isso: trazer o letramento racial por meio de falas importantes, destacando a importância do amor e da evolução”.
Sobre Ìlê Asè Efunsola Ajàgúnà
O Ilè Asé Efunsola Àjagúnà é uma casa de Candomblé localizada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, conduzida pelo Babalorixá Geiser Barreto de Oxaguiã (Òṣà Ògìnyán). A casa faz parte da Roça São Miguel, cuja matriz está situada em Belo Horizonte, Minas Gerais, sob a liderança do Babalorixá Paulo Gazire de Oxóssi.
Para Geiser, o documentário se mostra necessário em valor cultural, religioso e como forma de resistência. “Fiquei muito emocionado, desde a produção até os resultados. Nossa cidade e Estado, tão ricos em cultura, solo e povo, precisava ter acesso a mais essa diversidade. Quem sabe dessa forma, da arte, pela cultura, possamos quebrar alguns paradigmas e preconceitos tão enraizados nas religiões de matrizes africana”, destacou para o jornal O Estado.
Formalmente constituída com essa denominação desde janeiro de 2016, sua história remonta a um período anterior, quando o Babalorixá, natural de Belo Horizonte, já realizava trabalhos espirituais de forma discreta. Com o tempo, a crescente demanda e a necessidade social de acolhimento e orientação espiritual levaram à criação oficial do terreiro.
“Para nossa cultura religiosa, o amor tem toda beleza abstrata e física que conhecemos, mas etimologicamente também trazem os conceitos comportamentais de; cuidado, proximidade, proteção, atração, afeto e confiança. O amor para nós é alinhamento ou realinhamento, condução e recondução, é a liberdade de acertar, mas também de errar, pois pelo e por amor encontraremos conforto e acolhimento”, explica o Babalorixá.
Com raízes na tradição Ketu, o nascimento do Ilè Asé Efunsola Àjagúnà representa a continuidade de um legado ancestral, já que a mãe do Babalorixá Geiser, é também Yalorixá e benzedeira. “Ketu é uma figura central nas religiões de matrizes africanas, principalmente nas agro-brasileiras. A origem de Ketu está profundamente ligada aos povos da nação Yorubá. A palavra ‘Ketu’ pode se referir tanto a uma localidade quanto a um orixá específico. Ketu, no Candomblé, é uma das nações ou nações religiosas que fazem parte do culto aos orixás”, destaca.
“Espero que dê alguma forma [o filme] toque com os retratos comuns da nossa sociedade religiosa, a simplicidade, a luta diária, as vitórias pelo afeto, o que também são retratos da maioria da população brasileira. Que possam se identificar e aceitar as diferenças a partir do reflexo. Afinal não somos todos iguais, mas temos várias semelhanças”, finaliza.
Sobre Mariane Lopes
Mariane Lopes é multi-artista, produtora e realizadora cultural e audiovisual sul-mato-grossense. Sua pesquisa transita entre fotografia, performance, vídeo e pintura, explorando a permanência de narrativas históricas e saberes tradicionais no presente, a partir de perspectivas afro-brasileiras ou não.
A partir de um olhar documental, Mariane realiza então sua primeira produção coletiva com irmãos de santo de curta-metragem no ano de 2024, tanto como ferramenta de registro e memória quanto como meio de criação de fabulações e reflexões que promovem uma decolonialidade como sua maior narrativa.
Serviço: A exibição do filme intitulado “ÌLÊ ASÈ EFUNSOLA AJÀGÚNÀ” acontece na programação da terceira edição do Campão Cultural, no Pantanal Film Fest, na sexta-feira (4), às 18h, no Museu da Imagem e Som, no terceiro andar do prédio da Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul, Av. Fernando Corrêa da Costa 559, Centro.
Por Carolina Rampi