Um debate público sobre a nova fase da tensão russo-ucraniana teve lugar na Bélgica recentemente e reuniu quatro grandes especialistas do assunto. Um deles é um conhecido jornalista investigativo francês, com dezenas de livros e milhares de artigos publicados sobre questões europeias, euroasiáticas e internacionais. Outro foi um alto funcionário das Nações Unidas, que participou de vários processos de peacebuilding mundo afora e atualmente vive de ser consultor para assuntos de defesa. O terceiro é um importante catedrático da Universidade Livre de Bruxelas (ULB). E o último é uma renomada doutora em história e cultura russo-ucraniana, também vinculada à ULB.
O professor e o jornalista foram os primeiros a se manifestar e, ao longo de quinze minutos, expuseram duas miradas ricamente abrangentes sobre as razões do conflito. O primeiro pontuou alguns segredos internos da sociedade russo-ucraniana. O segundo chamou a atenção para a tensão mundial entre Washington-Pequim-Moscou.
Em seguida, o consultor se dedicou a estabelecer uma cronologia do conflito. E, por fim, veio a doutora, que iniciou a sua manifestação em russo perguntando se alguém entre os demais falava o idioma eslavo e, diante das negativas, avançou desautorizando a validade dos argumentos anteriormente apresentados. Segundo ela, quem não domina o idioma de Tolstói não possui autoridade para discorrer sobre a sorte do contencioso.
O jornalista – o mais atacado pela doutora – lembrou que o uso de “princípios de autoridade” para silenciar oponentes não passa de um embuste autoritário. A professora retorquiu afirmando que “não doutores” não deveriam se manifestar.
Como reação, o jornalista indicou, impiedosamente, que “doutores das ciências humanas e humanidades jamais tiveram o monopólio sobre os assuntos que abordam” e, quando tratam de temas imediatos, sempre estiveram fadados à “irrelevância”.
Um silêncio ensurdecedor tomou conta do auditório. Depois a doutora da ULB voltou a se manifestar. Sempre e somente em russo. Os não russófilos – mais de 90% da audiência – ficaram a entreolhar-se. O consultor iniciou reações em inglês – idioma que a doutora não domina – e a fez provar do próprio veneno. O catedrático e o jornalista reforçaram a dimensão autoritariamente improcedente da postura dessa mulher. Ora realçando o caráter inconsequente do fetiche pelo título de doutor. Ora explicitando a imperícia de braço com o ridículo daqueles que creditam à formação acadêmica poderes mágicos ou de onisciência.
Cenas lamentáveis. Mas, infelizmente, recorrentes.
Quem transita por espaços das humanidades e ciências humanas pelo Brasil e mundo afora possui experiência para atestar o quão frequentes são essas cenas. Independente do prestígio do departamento, da faculdade ou da universidade, não é difícil a localização de verdadeiros idiotas com o título de doutor. Novos e velhos, integralmente lobotomizados pela ilusão do saber contida em títulos acadêmicos.
Mesmo que ridícula, essa incorrigível postura possui a sua razão de ser. Trata-se, inconscientemente, de mecanismo de proteção de espaços de conhecimento amplamente vilipendiados, no Brasil e pelo mundo, em tempos recentes.
O adágio provençal que informa que “tudo compreender é tudo perdoar” pode, assim, tornar esse ridículo quase aceitável. Ele permite uma maior atenção às suas razões de ser.
Maior atenção não para conduzir o ridículo à reabilitação, mas para auxiliar na compreensão de que essa postura decorre menos de misérias humanas – distorções de autoimagem, fragilidades culturais ou péssimo domínio de áreas acadêmicas – e mais de hecatombes epistemológicas que transpassam todas as áreas do saber nos últimos cinquenta anos.
Por Daniel Afonso da Silva, doutor em história social pela Universidade de São Paulo, pós-doutor em relações internacionais pela Sciences Po de Paris e professor na Universidade Federal da Grande Dourados.