Por PEDRO MARTINS, de SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mãos no chão, bunda empinada e muito rebolado. Foi com esses movimentos que Anitta levou “Envolver” ao topo das músicas mais tocadas no Spotify mundo afora.
O single, em espanhol, não era novo nem um grande sucesso. Desde que foi lançado, em novembro, não tinha chegado nem sequer ao topo das paradas brasileiras, o que Anitta já havia feito mais de dez vezes. Eis que, uma semana atrás, sua coreografia viralizou no TikTok e passou a ser reproduzida por estrelas de Gil do Vigor a Ana Maria Braga. Desde então, Anitta vem quebrando recordes dia após dia.
Flávio Verne, coreógrafo de Pabllo Vittar, Luísa Sonza e Duda Beat, arrisca um palpite para explicar o sucesso. “Para gravar um TikTok, a pessoa vai ensaiar várias vezes, gravar outras tantas, e nisso os plays vão se somando. Você ouve a música mais de dez vezes antes de postar a dancinha”, diz.
Mas ele mesmo adverte que não podemos ser simplistas. Afinal, já faz cinco anos, desde “Paradinha”, que Anitta lança single atrás de single em espanhol, inglês ou nos dois idiomas misturados com o português para chegar aonde chegou.
É o que também diz Marcelo Castello Branco, diretor da União Brasileira dos Compositores, a UBC. Com 30 anos de carreira, ele presidiu a Universal Music na América Latina, em Portugal e na Espanha. Ao se lembrar das ocasiões em que tentou exportar figuras como Sandy & Junior e Ivete Sangalo, o executivo lembra a falta de disponibilidade dos artistas para se dedicar à carreira estrangeira como principal motivo do fracasso.
É que não basta, ele argumenta, fazer um show ou outro no exterior. É preciso se mudar do Brasil para virar presença constante em eventos da indústria e, assim, criar conexões sólidas com figuras estrangeiras que podem ajudar a alavancar uma carreira lá fora.
Isso é tudo o que Anitta vem fazendo há anos, numa ponte-aérea frenética entre o Brasil e os Estados Unidos, como demonstra a série documental da Netflix que acompanha o seu dia a dia. É, por outro lado, exatamente o que artistas como Michel Teló e Gusttavo Lima não quiseram fazer na década passada, quando “Ai Se Eu Te Pego” e “Balada Boa” estouraram mundo afora.
Ou ainda, para dar exemplos mais antigos, o que Chitãozinho & Xororó não fizeram depois de emplacar “Guadalupe”, que abasteceu a trilha sonora de novelas mexicanas, no topo da principal parada musical latina, a Hot Latin Singles, da revista Billboard.
“Uma coisa é exportar canções. Outra é exportar talentos”, diz Castello Branco. “Isso demanda disposição para investir lá fora e correr o risco de perder tempo e dinheiro, já que, no Brasil, um artista estourado pode rodar o país fazendo shows sem parar por até cinco anos. Ninguém quer trocar o certo pelo duvidoso”.
“É diferente de artistas de outros países. Um chileno quando estoura logo vai para Argentina, depois para o México, porque o Chile é um mercado muito pequeno. Aí fica mais fácil entrar na Europa, através da Espanha, e até no corredor latino dos Estados Unidos”, acrescenta. “Não é muito diferente do que fez a Shakira, que saiu da Colômbia”.
Esse cenário parece estar prestes a mudar, no entanto. Giulia Be, que normalmente alcança posições mais altas nas paradas de Portugal do que do Brasil, vai se mudar para Miami e produzir um EP em espanhol. Ela já testou as águas com “2 Palabras”, que ganhou um clipe com direção de uma figura de luxo, Harold Jiménez, o produtor de “Envolver” e o diretor de dois sucessos de Anitta em espanhol – “Medicina” e “Machika” –, gravada com J Balvin.
Isso ocorre, diz Castello Branco, porque a nova geração de cantores, com seus 20 e poucos anos, já nasce num mundo globalizado e aprende a cultura estrangeira e idiomas como o inglês e o espanhol ainda crianças, antes mesmo de se dedicar à música. “A Anitta pode cantar na língua que quiser, porque não vai soar falso. Nem sotaque ela tem mais”, diz o executivo sobre o inglês da cantora, que impressionou o público por sua fluência numa entrevista ao apresentador Jimmy Fallon.
É uma realidade diferente comparada à de Chitãozinho & Xororó ou até de figuras mais novas, como Victor & Léo, que tentaram verter discos inteiros para o espanhol, mas fracassaram.
Rick Bonadio concorda que buscar uma carreira internacional hoje é muito mais fácil. Uma das figuras mais importantes da indústria musical brasileira nos anos 1990 e 2000, ele também tentou exportar os artistas que produzia, de Mamonas Assassinas a Rouge. O produtor diz que, com o streaming e as redes sociais, até o investimento que uma gravadora precisa fazer para lançar um artista lá fora diminuiu. Antes, só para começar o trabalho era preciso desembolsar meio milhão de dólares por território.
“Havia limitações físicas. Você precisava que a gravadora de fora fabricasse seus CDs e fizesse eles chegarem às lojas, além de levar o artista para uma turnê promocional para que ele se apresentasse aos novos fãs em potencial. Agora, isso pode ser feito no Instagram, como faz Anitta”.
Os executivos também divergem ao tentar explicar o sucesso de Anitta. Enquanto Bonadio diz que o que emplaca mais fácil lá fora é “o pop genérico, cantado em inglês”, Castello Branco afirma que os brasileiros precisam “assumir que somos vira-latas, no bom sentido, e olhar para o espanhol e para a América Latina”.
“A senha para a exportação de música é a originalidade. Por que a maior exportação nossa até hoje é a bossa nova? Porque ela é absolutamente original”, diz. “Ninguém quer uma cópia do que os outros já fazem”.
Os rankings de músicas mais ouvidas parecem reforçar a visão de Castello Branco. Com exceção dos Estados Unidos, sete dos dez países que mais estão ouvindo “Envolver” no YouTube são da América Latina e os outros dois, embora sejam europeus, têm línguas latinas como seu idioma principal – Espanha e Portugal.
Outra evidência disso é que “Boys Don’t Cry”, a primeira música solo de Anitta em inglês, não figurou entre as 200 mais tocadas do Spotify nos Estados Unidos. Ela até chegou à parada global, onde ocupou a 58ª posição, mas mais de 80% das audições vieram de brasileiros.
É como se o single, produzido por uma das maiores figuras da indústria musical americana – Max Martin, que já trabalhou com estrelas como Lady Gaga, Adele e Taylor Swift –, tivesse fracassado, já que, com músicas em português, Anitta voou mais alto. “Vai Malandra”, por exemplo, chegou à 18ª posição ao ser lançada. Era seu maior sucesso global antes de “Envolver”.
Os executivos, no entanto, dizem que os rankings precisam ser interpretados com cuidado, já que, por serem voláteis, o sucesso que eles atestam podem ser – e quase sempre são – efêmeros. Ele cita Caetano Veloso, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e outros ícones da MPB que, embora não tenham chegado ao topo das paradas, são amplamente conhecidos lá fora.
“Até ‘Caneta Azul’ viralizou no YouTube, mas só porque era engraçada. Para saber se é sucesso mesmo, você tem que começar a cantar lá fora e todo mundo sair cantando junto, como faziam com ‘Ai Se Eu Te Pego'”, diz Bonadio.
É nesse sentido, Castello Branco afirma, que apostas anteriores da cantora não podem ser desconsideradas para explicar o sucesso de hoje. “Independentemente da posição que atingiu nos charts, ‘Girl from Rio’ foi a música que posicionou Anitta bem entre os empresários e os grandes artistas estrangeiros, justamente por ser uma releitura da música brasileira mais conhecida de todos os tempos”.