Acyr Guimarães mostra os passos dos iniciadores do Brasil

Escravidão e resistência, extermínios e incessante retomada nas lutas por conquistar, desbravar, demarcar território. A saga bandeirante no Brasil não esteve acima do bem e do mal, pois nada assim poderia estar, mas é quase impossível estabelecer juízos de certo e errado acerca de atos e fatos distanciados nos séculos. Costuma-se verificar da importância de uma ação, pelas suas consequências no tempo. A história não se cansa de aprovar seus heróis para logo desaprová-los, ou condená-los para depois redimi-los, tudo isso ao influxo das diferentes conjunturas. O bandeirante fantasticamente brutal e poderosamente realizador, à feição de Antônio Raposo Tavares, traz às costas continentes de predestinação e coragem, mau- -caratismo e honra, ambição e violência, altivez e vergonha. Não se enviou anjos para garantir a ocupação da terra selvagem. O íncola haveria de perecer. Milagre brasileiro: o índio massacrado e o negro com seus borbotões de sangue somos todos nós que continuamos a existir aqui, miscigenados alegres e chorosos; carentes de educação, progresso e paz, lutando ainda e agora contra a escravidão da ignorância e das injunções da matéria, lutando ansiosamente pelo acesso às ciências, quase esmagados e resistindo diante da asfixia estrangeira.

O livro Saga Bandeirante é uma publicação do imortal Acyr Vaz Guimarães. De São Vicente ao Chuí. Dos Campos de Piratininga às Minas do Cuiabá. Saga é narrativa, é canção. Bandeirante é precursor, é uma canção paulista, um grito entradista.

O escritor historiador, agrônomo Acyr Vaz Guimarães [FOTO] (Ponta Porã, MS, 29/7/1919-Campo Grande, MS, 16/12/2005), memória, ocupou a cadeira 16 da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, hoje ocupada por Paulo Tadeu Haendchen, patrono Rosário Congro. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul. Publicou também as obras: “Seiscentas Léguas a Pé”; “História de Mato Grosso do Sul” (em parceria com Hildebrando Campestrini); “Mato Grosso do Sul – História dos Municípios” (volume um); “Quinhentas Léguas em Canoa”; “A Guerra do Paraguai – verdades e mentiras”; “Mato Grosso do Sul – sua evolução histórica”; e “A Guerra do Paraguai – suas causas”.

As narrativas da obra Saga Bandeirante começam com o delicado assunto da caça e escravização indígena. Era a década de 1530 e a Igreja Católica exprobrava claramente a prática, mas a questão ético-moral estava de antolho com a realidade prática material. O braço indígena foi definido como imprescindível e decisivo para todos os tentames iniciais no Brasil colônia. E depois as bandeiras teriam a 24 Grandezas da Literatura Sul-Mato-Grossense alma do mameluco (mistura do branco com o índio). O comércio escravista fomentado em São Vicente era meio de renda e sobrevivência. A peça indígena era remédio e assim mesmo chamada. Sem remédio a Vila morreria. Sobre isso os jesuítas, catequistas, batiam-se com as autoridades e tiveram grande papel nesse magnífico enredo histórico.

Conta-nos o autor, havia “uma insana caça ao índio para exportá-lo para as regiões do norte (hoje nordeste). Àquele tempo existiam 36 engenhos de açúcar na Bahia e 66 em Pernambuco, crescendo seu número ano após ano. Mão de obra? O índio do sul, substituído pelo negro africano somente em fins do século XVI e começo do XVII. Até lá muito índio deveria ser apresado (…)”. Paralelamente à captura do índio (verdadeira e maior intenção), a internação sertões alegava a procura do ouro e da prata. O indígena, sempre guerreiro, jamais deixou de resistir no quadro geral, mas as relações sofriam questionáveis “acomodações”, a ponto de que, nos jogos de “amizade” e “sobrevivência” – “os próprios índios, instigados pelos espias, caçavam-se mutuamente em troca de qualquer coisa”. – Citamos para lembrar o comportamento humano que, em épocas de grande transição, mostra-se novo e surpreendente a cada lance.

As terras brasileiras eram objeto de prolongadas disputas entre portugueses e espanhóis, presentes no território. Grandes embates, vitória portuguesa garantida pelo paulista. Acyr: “Os paulistas conheciam todas as veredas e não permitiam que espanhóis ali caminhassem em busca do remédio — (a peça, o elemento indígena) — (…) bastante organizados, tinham ao longo das veredas, lugares certos da caminhada onde eram abastecidos e faziam descanso (…)”. Espanhóis, jesuítas sofreram sob Raposo Tavares, a quem nada parecia ser capaz de deter. O bravo acometeu e abriu, para garantir anexação territorial, Itatim, onde hoje é Mato Grosso do Sul.

Em 1631, junto com Manuel Preto, havia destruído Vila Rica e Ciudad Real, dos espanhóis, dominando a região do Guairá, atualmente oeste do Paraná. De 1648 a 1651 Raposo Tavares aniquilou as missões (jesuíticas, espanholas, que protegiam os índios) do Itatim (em 1647 fez com que a área passasse em definitivo ao domínio português), foi aos Andes, desceu o Amazonas e chegou a Belém, percorrendo 12 mil quilômetros. – Pense de que forma e com quais modalidades de transporte e meios de sobrevivência! E nas ocorrências daquela vida! Em Pernambuco, tomou parte na terrível batalha naval contra os invasores holandeses. Dizem que ao retornar da longa expedição que constituiu o primeiro reconhecimento geográfico do território brasileiro, estava “tão desfigurado que nem seus parentes o reconheceram”. Cresceram os mapas com a força do bandeirante.

Correu-se no tempo e no grande oeste brasileiro nos anos a partir de 1700 a conquista encontrava e vencia a forte resistência indígena, destacadamente a do paiaguá (povo agora extinto, da família linguística guaicuru, que habitava as margens do rio Paraguai) e a do caiuá. Enquanto o Tratado de Madri (1750) procurava resolver as “desavenças entre portugueses e espanhóis”, graças aos paulistas “consubstanciava-se a posse definitiva das terras que outrora foram o Guairá, o Itatim, o Tape (Tape, Rio Grande do Sul)”.

Contudo a sanha espanhola não fora superada e novas lutas se desenrolaram, compondo- -se momentos de heroísmo como o do português tenente-coronel de infantaria Ricardo Franco de Almeida Serra (engenheiro geógrafo), comandante que defendeu o lendário Forte Coimbra (fundado em setembro de 1775), sendo vitorioso tendo apenas 100 homens mal armados contra 600 bem aparatados, liderados por Dom Lazaro de Ribeira (de Assunção, rio Paraguai acima, setembro de 1801). “Nascidos sob a proteção do Forte de Coimbra ali estavam habitados o Presídio de Miranda, a Vila de Albuquerque (hoje Corumbá) e a outra Albuquerque dos Índios, dos franciscanos (…)”, escreve Acyr Vaz.

Acyr Vaz Guimarães! Em 2008 somos perto de 184 milhões de brasileiros. Em 1500 éramos os gentios (os índios) estimados em aproximadamente cinco milhões. Oficialmente agora há 460 mil índios no Brasil. A cantiga íncola ecoa na memória que você tanto estudou, saudando-o em suas vigílias. Os apaixonados da história são seus enriquecidos. O escrínio celeste guarda o ouro da sua inteligência e nós, no imaginário flutuante de novas canoagens, guardamos seus escritos para aprender a participar, com maior segurança, do incessante recomeçar da história. (Guimarães Rocha)

Guimarães Rocha: Professor, poeta e escritor, atualmente presidente da Academia Maçônica de Letras de MS.

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