‘Estupro sem culpa’ é aberração jurídica, dizem especialistas

A internet foi surpreendida ontem (3) com a informação de que o empresário André de Camargo Aranha foi absolvido da acusação de estuprar a promotora de eventos Mariana Ferrer, 23 anos, durante uma festa em dezembro de 2018 em Santa Catarina.

Segundo o promotor responsável pelo caso, Thiago Carriço de Oliveira, não havia como o acusado saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto “intenção” de estuprar. Por isso, o juiz aceitou a argumentação de que ele cometeu “estupro culposo”. Ou seja, sem intenção.

O problema, segundo especialista ouvido pelo O Estado, é que essa tipificação de crime não existe. “Convém traçar uma explicação: os atos que poderiam ser enquadrados como crime, quando praticados na sua modalidade culposa, somente podem ser punidos se houver previsão legal para tanto. É o caso do homicídio culposo, por exemplo. Por outro lado, no tipo penal ‘estupro’, não há previsão legal para a modalidade culposa – o que levou à absolvição de André Aranha por esse motivo, que, perdoem-me os envolvidos, é tosco”, disse Marina Nogueira de Almeida, doutora em Direito na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e especialista no direito das mulheres.

O primeiro promotor do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC), responsável pelo caso, Alexandre Piazza, em julho de 2019, denunciou Aranha por estupro de vulnerável e pediu a prisão preventiva. Esse pedido foi aceito pela Justiça, mas a defesa conseguiu derrubar a medida com uma liminar.

Piazza deixou o caso e quem assumiu foi Oliveira que trouxe a tese de “estupro sem intenção” com o argumento de que os exames toxicológicos não mostram álcool ou drogas no sangue de Mariana Ferrer.

Além disso, com base em imagens de outras câmeras, ele afirma que a promotora de eventos “parecia sóbria ao sair do Café de la Musique”, casa noturna onde ocorreu o hipotético crime.

O julgamento foi em setembro, mas a gravação da audiência final do julgamento vazou pelo site ‘The Intercept Brasil’. Nas imagens, é possível ver o advogado de André Aranha humilhando Mari Ferrer. Ele mostrou fotos dela em trabalhos como modelo profissional para ataca-la.

Segundo o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho as imagens seriam “ginecológicas”, como definiu. Além disso, durante a sessão ele afirmou que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mari Ferrer. O julgamento aconteceu de forma online e as imagens foram captadas e divulgadas pelo Intercept.

A vítima chorava e ouviu do advogado: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”. Mari Ferrer ainda afirmou que nem mesmo os acusados eram tratados daquela maneira ao reclamar da conduta do advogado.

“Teu showzinho você vai no seu Instagram dar depois”, disse o advogado de Aranha. “É seu ganha pão a desgraça dos outros, fala a verdade”.

A jovem reclamou do interrogatório para o juiz. “Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, diz. As poucas interferências do juiz, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, ocorrem após as falas de Gastão. Em uma das situações, o juiz avisa Mariana que vai parar a gravação para que ela possa se recompor e tomar água e pede para o advogado manter um “bom nível”.

“Não tive acesso aos autos nem à sentença. Só vi a deplorável atuação do advogado de defesa, que coloca Mariana como culpada do segundo crime mas grave de todos no ordenamento brasileiro: o crime de ser mulher. Como não tive esse acesso, não vou comentar o caso em particular, mas em tese: não existe a possibilidade de se cometer estupro sem intenção. O estupro sempre tem intenção. O estuprador sempre sabe que não teve o consentimento expresso da vítima”, completou Mariana.

Pela polêmica do ocorrido, diversas autoridades de Mato Grosso do Sul procuradas pela reportagem não quiseram comentar o ocorrido. Uma delegada com histórico de atuação na causa feminina, contudo, foi categórica.

“Se a mulher disse “não”, é estupro. Se a mulher disse “sim”, mas, mudou de ideia, e disse “não”, o que acontecer depois dali também é estupro. Se a mulher não consegue dizer nada, porque está dormindo, ou bêbada, ou drogada, ou sem saber o que está acontecendo, sempre será estupro. E é justamente por isso que é impossível o estupro culposo. Se o acusado não sabe se tinha, ou não, o consentimento, então o que aconteceu foi estupro. Doloso. E a culpa nunca é da vítima”, apontou a autoridade da Polícia Civil.

(Texto: Rafael Ribeiro)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *